Este ano que está para terminar, tem-me proporcionado muitas emoções, embora não todas sim algumas delas muito positivas. Entre elas, no quadro das sempre adoráveis visitas às amigas e amigos portugueses, foi das melhores ter conhecido a revista Eufeme ~ magazine de poesia e o seu responsável, Sérgio Ninguém, através do que desde há dúzias de anos foi o meu factotum das relações lusófonas, o inspirado e insuficientemente reconhecido poeta Amadeu Baptista.
No número 5 (já esgotado, segundo a editorial) desta formossísima revista portuguesa podem encontrar-se, para além do meu, outros de nomes que bem conhecerão ou deveriam conhecer, se gostarem da boa poesia: Ana Horta, António José Queiroz, Domingos da Mota, Edgardo Xavier, Eduardo Bettencourt Pinto, Eduardo Quina, Francisco Cardo, Gilles Fabre, Gisela, Gracias Ramos Rosa, Jack Galmitz, Jorge Arrimar, Lee Gurga, m. parissy, Maria F. Roldão, Mila Vidal Paletti, Rui Tinoco, Sónia Oliveira e Zlatka Timenova.
Os poemas que publiquei e que aqui apresento constituem um avanço do meu novo livro Teoria das ruínas, em breve no prelo da chancela portuguesa Poética Edições, da escritora e já amiga Virgínia do Carmo.
*
CAÇADOR
Nada me compraz tanto observar
como a dourada luz dos astros a desenhar
a placenta embalsamada do mundo.
Num tapete de animais remotos sentir
a força gravitante da espinha dorsal
no percurso de uma dança antiga.
Cantar coa copa cheia
de sangue ritual,
indicar com precisão o lugar
de uma doença velha,
saltar o valado para o primeiro amor
e principiar a vida nesta vida,
no redondo horizonte
de um mar em calma.
Porém, eu sou,
fugitivo da injustiça,
um homem que rouba em sua casa
e logo se perde na névoa
do seu próprio jardim.
Caçador de sonhos,
mato sem sabê-lo
as peças que alcançaram refúgio
no meu coração.
*
AS RATAZANAS
As ratazanas que comem o fígado deste prometeu
nada têm a ver com as tripas de um mito.
Elas são assim, comilonas,
as ratazanas.
Vivem à sombra da águia imperial
que tem justificado seu labor
como sol negro de um grave destino.
Porque as ratazanas do caos são as falhas
que o deus preguiçoso das cousas pequenas
deixou sem ordenar.
São escuros animais que roem
a madeira em que talhamos a consciência,
percebem as fendas da solidão,
entram pelos buracos da confiança
e envenenam os poços do amor.
Bichos com um coração sem sangue,
alimentam-se da carne
de homens agrilhoados.
*
A José António Lozano
CRIAÇÃO
No princípio
houve uma lágrima.
Uma fila de lágrimas
endureceu-se
e deu nos ossos.
Os ossos arderam
e da sua chama
surgiu a carne.
A carne fez-se leve
e de seu levedar
nasceram os cabelos.
Os cabelos, como vento,
não queriam ficar presos
e pelo aéreo sentimento
pairou a alma.
A alma morava só
no alto da montanha,
mas quando outra topou
sorriu
e dela manou
uma lágrima.
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