Fábricas do mesmo: a liberdade na era digital
A aparência de diversidade: milhares de pessoas no metro, no trânsito, nas ruas em que nos vamos cruzando. Navega-se depois pela net: redes sociais, sugestões de links, de locais e de temas – no fundo, de comportamentos. Tudo se processa como se procurássemos nos media, internáuticos ou mais tradicionais, um mapa para decifrar todo o caos em que continuamente nos achamos imersos. De qualquer modo, acabamos o dia com uma sensação de triunfo: colecionámos links e likes, fomos reforçados nas nossas opiniões.
Complexos algoritmos sugerem-nos notícias e compras, apresentam-nos amigos. São sistemas de recomendação que se baseiam nos nossos comportamentos anteriores para projetarem no futuro o nosso passado – e aparentemente com sucesso crescente. A literatura científica compete no aperfeiçoamento de programas informáticos, no fundo máquinas para nos ensinar opções nas nossas existências humanas.
Adquire nova força o vaticínio de Gonzalo Torrente Ballester que no século passado temia o surgimento (o ressurgimento?) de ondas de opinião – de unanimidade – a varrer toda a sociedade. Apresentam-nos a imagem da criança morta, da agressão inqualificável e como não é possível não nos indignarmos? O símbolo desencadeia a reação – no entanto, pensar exige uma cadeia de símbolos e de indagações: o que surge para nos indignarmos? O que nos é ocultado? Quem tem direito a rosto e quem não o tem? Como são apresentados esses rostos? Há também a análise pelo prisma das consequências, ao bom estilo pragmático britânico: quem ganha e quem perde com a nossa indignação?
Esta febre do mesmo varre também as nossas empresas e serviços: padronização das falas, dos atendimentos, dos currículos. Recentemente, lemos até a notícia da existência de um programa informático capaz de fazer seleção de pessoal. E a consequente oferta formativa: «saiba o que dizer, as palavras-chave mais importantes para se tornar um candidato elegível». Um candidato que se terá de imaginar um programa informático neste género de entrevistas.
Até a produção científica contemporânea está a sofrer com este género de situação. Aceitação pelo grupo de pares, a medição do sucesso pelo número de citações, acaba por restringir os temas aos de maior sucesso e aos artigos de revisão de temas, entre outros. Esta pressão da performance acaba por privilegiar a padronização da escrita e o evitamento de temas controversos. Esta situação acabou inclusive por permitir a concetualização de uma revista científica em que autores consagrados podem escrever sob pseudónimo por forma a poderem tratar assuntos menos politicamente corretos – uma escapatória para a diversidade no imenso oceano do igual. Tal é o desafio a que Jeff McMahan, professor na Universidade de Oxford, se propôs.
Enfim, se houvesse dúvidas, elas repetidamente tendem a ser diluídas: as fábricas do mesmo, alicerçadas em instrumentos digitais, destroem a individualidade, a diversidade. Em todo o caso, o melhor será jogar pelo seguro e dizer: «humaniza-te!»
Rui Tinoco é Psicólogo clínico e escritor
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