O PENSAMENTO GRÁFICO
1.
Interrogar o pensamento como quem olha para um gráfico que representa o assombro e a desorientação do animal humano. Estamos diante de uma paisagem de palavras cruzadas, uma montanha carregada de conceitos, interpelações, enigmas, sensações mudas e transmutações geográficas de uma linguagem selvática: a origem de um mundo numa página de terra desmemoriada, mas que ainda assim gera um corpo cósmico, desassossegado, animalizante. É uma recomposição do animal humano nos seus vasos interrogativos, estimulados pelo excesso de visões diabólicas; história órfica que apenas contempla o agora-caos, a impulsividade do que é presente sem interferência na vida-tempo, do espiritual inóspito cujo acontecimento sem história chama por um deus fora do mundo.
2.
Falar para a montanha. Morder a montanha. O animal humano desta obra FALAR É MORDER UMA EPIDEMIA sabe que o pensamento é epidémico, uma tentativa de corporificar o vazio da linguagem, ocupar o espaço da visão cega, criar afastamentos e redimensionar a montanha dos tempos codificados no próprio ser. O jogo das vontades primárias criam lapsos na vida, espasmos da matéria que hão-de emergir numa multidão de memórias desconfiguradas, que não distinguem as afectações do pânico social, a morte reguladora da existência, porquanto a realidade é uma fragmentação dentro da natureza do pensamento, ocultando-se nas vozes insondáveis e nos murmúrios dos signos, no contraditório do silêncio.
3.
Se pensar é narrar fugindo aos exercícios da racionalidade imediata, referencial e cronológica, escrever desdobra o pensamento em imprevistos mentais e antecipa a acção contínua de uma palavra-movimento, entra nas vastidões da linguagem inacessível às geografias impessoais de pensar pelos outros, intensificando-os com as interpelações da palavra que na sua deserção e deslocamento atravessa toda a animalidade delirante do outro, porque só o animal humano procura o eterno incerto, o improviso interno de criar obra compulsiva, dando sentido geográfico à própria identidade, à fala revivificada no grito do real, e renovando em si mesmo todos os planos efabulatórios, todos os ecos do caos e dos sentidos, todas as mutações do impensável e todos os actos demolidores. O pensamento sobe a montanha das deformações e o Homem é movimento e gráfico-criativo; ele experimenta o mundo antes de o arrancar da harmonia, dos ritmos sensíveis da coexistência, das memórias viventes dos sentimentos pacíficos.
4.
O ser humano animal golpeia então a montanha, ascende e descende forçando o sentido à vida; causa delito ao mundo, implode em total gramática incivilizada, abismática, furtiva. É um animal que trabalha o caos do instante, cria perspectivas de ansiedade e de medo, arquitecta as forças de angústia, tentando incorporar a análise não sujeita a emoções nem a intensidades identitárias; torna-se assim um pensante-verme a perfurar o mundo, a corroer a montanha do caos, em busca de novos processos de decifração; interpretações. Pensar é aprender a recuperar a fala por meio de rupturas e enunciações afectas ao silêncio.
5.
Morder compulsivamente a própria voz, ser impelido para a devoração de territórios narrativos improvisados na dureza do corpo-montanha, captando a infinitude da realidade inexplorada e estranha e simultaneamente ritualizada em planos alucinantes, expandida em experimentações de compulsividade. As interacções gráficas do pensamento são devastações, desencontros de vozes indecifráveis, abismos quotidianos, movimentos desarticulados e anarquistas. Insurreições.
O TEXTO – FLORESTA
1.
FALAR É MORDER UMA EPIDEMIA constrói uma imensa floresta na qual o animal humano cria as suas próprias clareiras; são as transparências que invadem o texto e revelam ao leitor o habitat espiritual da humanidade, a realidade civilizacional, os absurdos das fronteiras intransponíveis; fronteiras físicas e verbais assinaladas como lacerações da liberdade do Homem dentro de si próprio. Estes atordoamentos da linguagem são subterrâneos onde a história cria as suas raízes; e o tempo fende a memória fantasiosa. O texto é interrogação, ecossistema da razão, linguagem lendária tatuada no silêncio das multidões improvisadas nos espelhos da verdade absoluta. Mas escrever é criar verdades periféricas, espaços encriptados na sua base de narração sensorial: tudo no texto-floresta é construído contra as forças labirínticas da errância; contra o contágio dos tempos demoníacos.
2.
As vozes do texto e as suas derivações cartografam os caminhos da floresta; a linguagem é uma encruzilhada que recolhe todos os sentidos do ser humano animal, oferece-lhe a pedra arquitectónica, estende-lhe os mapas do tempo e do espaço, salva-o do drama do vivido e prepara-o para as fragmentações do mundo. Os textos incendeiam a floresta mas é a luz que arde, são as metamorfoses do pensamento a fala infinita do autor, as suas derivas e perplexidades, as suas epifanias poéticas, os seus mandamentos filosóficos. Esta ciência de escrever em vertiginoso ritmo de sentido e multiplicidade metafísica é uma desobediência ao mundo infernal.
3.
Mas há sempre uma floresta invisível no começo de cada texto, uma linguagem que inverte o sentido da palavra fora de si mesma, a palavra muda quase-nascida, incriada no impensável, diagnosticada apenas no movimento contemplativo do subconsciente. A floresta da mente renova-se com estes cristais exultantes do verbo; da palavra-vestígio; da palavra-montagem onde a vida se exila. Contudo nenhuma epidemia desconstrói a floresta. Não há submissão à crítica da palavra interminável, activada pelo real, infinitamente recomeçável no texto aberto ao mundo: se a linguagem é cântico estimulador do animal humano, este é corpo-grafia da palavra intensiva materializada na lucidez e na sabedoria.
4.
Palavra que é movimento e repouso respiratório, pulmão da floresta. O texto é contemplativo e antecipa o assombro do seu significado, desarticula os cânticos teóricos da escrita; promove as reaparições do que é mais profundo numa linguagem e reinventa as grandezas da existência humana: a fala viva, perdurável. Fala-escrita no centro da denúncia: retardar a epidemia das forças anómalas dos cultores críticos exasperados à deriva na floresta.
O CRIATIVO FORTE
1.
O leitor entra na floresta da filosofia intensificando a procura das mil chaves combinatórias com a natureza do texto que o autor ocultou com precisão nos delírios verbais de um espírito inabalável, problematizante, labiríntico, mas é no contra-texto que o leitor deste FALAR É MORDER UMA EPIDEMIA encontrará a chave-única, a chave-autor que abrirá fissuras na cabeça do animal humano. Tudo o que o leitor há-de interiorizar na vastidão da floresta será intensificado por essa chave-epifânia, conectada com o mundo, reviva no experimentalismo dos sentidos do texto, dos fluxos do pensamento heterónimo do silêncio, como se a voz da floresta vivificasse na criação de um eco cada vez mais longínquo, até se tornar uma visão indizível, uma pré-evidência da filosofia.
2.
FALAR É MORDER UMA EPIDEMIA desdobra a linguagem em significados expurgadores, elípticos; pêndulos ideológicos cuja tensão antecipa os enigmas de pensar do futuro, foca-se nas memórias dos movimentos que são hoje prefigurações dos tempos vindouros, porque uma epidemia ideológica não pode eliminar o pensamento; as linguagens transmutam-se como a natureza, anarquizam-se em energia formulável, temporalidade, história sem retorno, emancipação mental, estímulos metafísicos. Também o leitor é fala-perseguidor dos sentidos e das sensações do animal humano que devolve a civilização à floresta, revela a chave da terra, é levado ao limite pelo autor – esse criativo forte que cria novas expressões para o mundo.
*
Fernando Esteves Pinto nasceu em Cascais. Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura. Bolsa de criação literária pelo Ministério da Cultura/Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Prémio Literário Cidade de Almada.
You might also like
More from Críticas
Sobre “Estado Demente Comrazão”, de Paulo Fernandes Mirás | Alfredo J. Ferreiro Salgueiro
Estado Demente Comrazão é um livro complicado. É por isso que não está na moda. Parabéns ao seu autor!
O tempo das “Não-Coisas”. E o uso excessivo das redes sociais segundo Byung-Chul Han
"O que há nas coisas: esse é o verdadeiro mistério" Jacques Lacan Agarramos o smartphone, verificamos as notificações do Instagram, do Facebook, …