… qualquer entrada é boa….
Entro no livro-rizoma de Luis Serguilha por uma brecha que se abriu ao longo de minha leitura, escavada pelos ecos das vozes ressonantes do pensamento múltiplo de Gilles Deleuze, cujos conceitos filosóficos centrais se incluem no “mar de palavras” (MELO E CASTRO, 2014, p. 77) constituído pelo instigante escripoeta, tais como ritornelo, visageidade, nomadismo, desterritorialização, intercessores.
Em uma de suas Conversações, Deleuze nos indica que “o essencial são os intercessores. A criação são os intercessores” (1990, p. 171), os quais teriam uma função ímpar de impulsionar o pensamento a romper seus próprios limites, a ir além, criando novas zonas de possibilidade. Tais intercessores pululam nas páginas de Falar é morder uma epidemia: múltiplas vozes de filósofos e pensadores (Lao Tsé, Anaximandro, Epicuro, Demócrito, Lucrécio, Zenão, Heráclito, Sêneca, Platão, Aristóteles, Plotino, Nicolau de Cusa, Agostinho, Spinoza, Hume, Vico, Condillac, Nietzsche, Bergson, Levinas, Deleuze), poetas (Ovídio, Virgílio, Camões, Dante, São João da Cruz, Blake, Coleridge, Whitman, Rimbaud, Apollinaire, Mallarmé, Leopardi, Melo e Castro, Ana Hatherly, Ezra Pound, Haroldo Campos, Hugo Ball, Kurt Schwittters, Holderlin, René Char, Ponge), romancistas e dramaturgos (Shakespeare, Cervantes, Melville, Carroll, Kafka, Flaubert, Proust, Beckett, Musil, Artaud, A. Jary, Joyce, Masoch, Tchekhov, Clarice Lispector/Macabea, Le Clézio), compositores (Wagner, Boulez, Stockhausen, Berio), artistas plásticos (Bosch, El Greco, Caravaggio, Goya, Bacon, Turner, Basquiat, Arp, Tarsila do Amaral, Gauguin, Pollock, Modigliani, Dubuffet, Magritte), cineastas (Irmãos Lumière, Murnau, Orson Welles, Cassavetes, Tarkovski, Godard, Buñuel, Robbe-Grillet, Eisenstein, Pasolini, Ozu, Kurosawa, Kubrick, Bergman), bailarinos/performers e coreógrafos (Nijinski, Ana Montenegro, Pina Bausch) compõem a polifonia deste poema-mundo. Nas palavras do poeta: “os extravios dos intercessores, os avanços da transdução usurpam as veemências cosmogónicas dos cadáveres-das-palavras com as velocidades-em-retardamento das corruções do grito polissémico”. Autorreflexivo, o “animal-poema” tematiza a relevância dessa apropriação dos saberes-mundo na ciranda de seu próprio fazer, que se abre assim à multiplicidade e ao outramento, linha de fuga contínua, sem ponto de repouso : “as palavras apropriam-se do volutear das vozes dançantes, de todas as artes, de todas as ciências, dos rasgos afectivos que retraçam os corpos, buscando o inacessível, o riso do não reconhecimento dentro da instabilidade, das vastidões polimorfas”.
Evidentemente, não se trata de uma obra de fácil leitura; a opacidade de sua espessura e o intricado da arquitextura de suas “línguas-mandalas-caleidoscópicas” criam grandes desafios ao leitor, instigando-o continuamente. A multiplicidade dos ritmos construídos, seu “movimento-maracatu”, seu “frevo jazzístico”, o “transe do inacessível de Boulez” impossibilitam o repouso, a estagnação. Diante desse livro, o “animal-leitor-sem-leme” se desnorteia, perdendo-se no labirinto traçado em suas páginas, para o qual não existe um fio a apontar a rota certa; o caminho, irradiante e proliferante, se constrói, então, na duração da própria re/des/trans/leitura, sempre múltipla e sem um ponto previsível de chegada. Assim, o inaudito “poema-Thaumazein” captura pelo assombro, pela perplexidade – sempre convites ao pensamento. A leitura da obra de Serguilha se instaura, portanto, como um combate com o caos e com o hermetismo do qual não se sai incólume.
Uma linha de força marcante do livro em questão (outra via de acesso) é a configuração de uma contínua reflexão metalinguística – “animal-poema” mordendo sua própria cauda – que envolve o próprio fazer poético, processo denominado pelo autor de “excriptura”, bem como a configuração das imagens/vozes de um leitor e uma leitora contagiados a percorrer e a desdobrar as volutas do texto em seu próprio processo de leitura/escritura. Aliás, as palavras referentes a essa construção em abismo, autorreferencial – “poema”, “leitor”, “leitora”, “excriptura”, “excrileitor”, “escrileitor” – são muito frequentes ao longo do livro, encontrando-se em quase todas as páginas. Importa destacar que a “excriptura” proliferante de Serguilha pressupõe simultaneamente um “escrileitor”, que acompanhe o desdobramento da leitura de modo ativo e igualmente criador, e um “excrileitor”, forjado a partir de um pensamento que, unindo as reflexões de Foucault, Blanchot e Deleuze, considera a escrita como movimento orientado para o Fora. Em outras palavras, o “excriptor” plasma em sua obra a figura do “excrileitor de outridades intervaladas de vozes órficas”, sendo ambos agentes marcados pelo signo do Fora, do que não pertence, do que se constrói no espaço ocupado pela exterioridade. A esse respeito, leiamos: “a expugnação do tempo por meio dos rascunhos proliferantes do pensamento, das paradoxalidades alógicas, do cinetismo das sincronias, dos carvões agramaticais do FORA (bordas da durabilidade plurívoca), forçam o corpo a hipertextualizar capturas insulares-náuticas do poema porque vive entre os ritmos caleidoscópicos e as animalidades do inexprimível”.
Outra brecha de entrada se localizaria no diálogo (implícito) com alguns conceitos centrais plasmados por Maurice Blanchot (1955, 1959, 1969, 2000) em sua reflexão sobre a literatura, especialmente a sua defesa de uma estética do fragmentário, baseada em um princípio central de inacabamento da obra que, não podendo encontrar seu ponto de sutura, deixa suas margens abertas à leitura crítica, tarefa sempre infinita e regida pela exigência de descontinuidade do próprio pensamento. Pondo em jogo uma heterogeneidade radical, a operação da escrita literária se realiza na comunicação com o desconhecido, já que, segundo o escritor francês, comunicar com o desconhecido exige a pluralidade. Nessa especial forma de escrita, portanto, a palavra não afirma nada, é um dizer que nada nada, não porque tudo já tenha sido dito, mas antes porque, em ausência de uma Unidade que a sobredetermine, a palavra se abisma no vazio que a faz existir como potência dispersa e privada de centro, em afinidade com o que se lê no título de uma das partes do “animal-poema” serguilhano: “A-AÇAIMES: o CENTRO-acentrado é a TRANSFRONTEIRA”.
Assim, com obras plurívocas, caósmicas e babélicas como as de Serguilha, aprendemos a pensar que na literatura – ou melhor, em certa prática da literatura, marcada pela multiplicidade e pelo enlace com o caos – a relação entre significante e significado é descontínua, o que a torna infinita, abrindo-a, com isso, a uma pluralidade de leituras. Em poucas palavras, a abertura posta em jogo pela “excriptura” se sustenta nas múltiplas possibilidades traçadas pelo devir da significação na diversidade infinita das relações. Nessa perspectiva, a dispersão do signo literário impede que, entre os diversos planos que constituem o texto, se produza uma relação de síntese que permita a compreensão e a tentativa de identificação, inerentes às formas de saber culturalmente legitimadas. Quando a escritura literária deixa de ser protegida pelo sistema normativo de uma dada cultura, cessando, com isso, de remeter-se à garantia da origem, ela se disponibiliza a responder à atração da pura exterioridade, que não comporta qualquer relação de presença nem qualquer tipo de legalidade. Desse modo, a “excriptura” serguilhiana do Fora não constitui uma espécie de vestígio através do qual se pudesse remontar até uma origem; ela consiste, antes, no apagamento da memória no esquecimento da origem. Na formulação sintética de Tatiana Levy, o “Fora é exatamente esse outro de todos os mundos que é revelado na literatura” (2003, p. 26). Ausência de obra e desobramento (désoeuvrement, que também poderia ser traduzido por inoperância) são termos que designam a relação da linguagem com o que Blanchot denomina de Fora. Tal forma singular de relação, em que a obra simultaneamente se constrói e se destrói, é explicitada por Peter Pélbart: “Oscilação inconclusa, eis a obra da modernidade: desobramento. O desobramento é o que, como o neutro, anula o tempo, dissolve a história, desbarata a dialética e a verdade, abole o sujeito e faz soçobrar uma ordem” (1989, p. 177).
Nesta excrileitura do texto de Serguilha que ensaio aqui, cabe igualmente remeter à proposta blanchotiana (cf. Le livre à venir, L´Espace littéraire) de escrever nas margens do livro, no espaço incerto de suas bordas, acusando na própria escrita o fim ou a ausência do livro, o que designa uma relação inusitada, uma “relação sem relação”, uma vez que a descontinuidade se instaura na própria instância da conjunção. Sem ponto de sutura ou de coesão, a estrutura unitária do livro se desfaz em pedaços, evidenciando a radical heterogeneidade e o fracionamento que acompanham toda relação quando o encontro é o resultado do jogo do acaso.
Reitere-se: tal fratura da unidade da obra supõe a perda irreparável de um centro de ancoragem, de referência absoluta. Sem tal referência, à margem de qualquer conceito sobredeterminador de verdade, a palavra se fragmenta e se dispersa em uma profusão sem limites. De fato, a palavra fragmentária é uma repetição sem origem, que, segundo Blanchot (1969, p. 57), “desde o mais profundo passado, do mais distante porvir, falou como palavra sempre por vir”; com isso, ela ignora a suficiência do discurso acabado, o conhecimento de conjunto, a gravidade de se apresentar a si mesma de maneira plena. Isso significa dizer que, no jogo infinito da fragmentação, a palavra de areia (cf. BLANCHOT, L´attente l´oubli), pulverizada e pulverizadora, alheia a qualquer forma de reverência pelo Todo ou pela Unidade, afasta do campo do pensamento toda tentativa de atribuir um sentido ao mundo. Nas palavras-em-movimento de Serguilha: “o animal-texto acontece numa composição esquizofrenicamente in-corpórea-blasfematória-possessiva, catapultadora de polissemias-visitantes-inacabadas e através das suas gesticulações-carnífices, das enxertaduras mudas, dos acontecimentos subversivos, das mitologias-não-mitológicas”. Esses diferentes ritmos de falas provocam, no texto serguilhano, um efeito vertiginoso, que deriva da multiplicação reiterada dos elementos superpostos, esfumaçando os seus contornos, num jogo incessante de fazer e desfazer que rompe com os hábitos de uma retórica do desenvolvimento.
A palavra errante desencadeia, na obra em foco, múltiplas fraturas na legibilidade, impossibilitando que a leitura se detenha nas referências, se ancore em um modelo fundador. Sobre tal questão, podemos citar Haroldo de Campos, que nos diz em Galáxias: “o vocábulo é a minha fábula”. Desse modo, em cada palavra, em cada fragmento que constitui a obra, a fala se pluraliza, metamorfoseando-se continuamente, abrindo para uma infinidade de sentidos, ou seja, construindo uma forma especial de linguagem que se aproxima muito da linguagem interrompida segundo Blanchot, por possibilitar que “a continuidade do movimento da escrita deixe intervir fundamentalmente a interrupção como sentido e a ruptura como forma” (BLANCHOT: 1969, p. 9).
Alquimista do léxico, Serguilha rompe o equilíbrio estável do signo, num constante deslocamento dos corpos verbais – “planetas desorbitados que abandonam suas elipses para inserir-se em outras”, segundo afirma Severo Sarduy (1979, 121) a respeito da obra de Haroldo de Campos –, criando diversas palavras fundidas, nas quais se integram significados independentes. Assim, encontramos no texto uma proliferação de mot-valises – tais como “mefistofilológico” “sexanguladas”, “semantúrgicas”, “escrileitores”, “transfronteirando” –, neologismos formados pela fusão de duas ou mais raízes de modo que uma única palavra se torne um nó de significados, abertos a novas constelações e probabilidades de leitura. Acerca dessa polissemia do significante, cabe citar o seiscentista Baltasar Gracián, renomado teórico da agudeza, que constitui uma presença marcante nas letras ibéricas de seu tempo : “uma palavra é como uma hidra vocal porque, além de sua significação própria e direta, se a cortamos ou a invertemos, de cada sílaba renasce uma sutileza de engenho e de cada reflexão, um conceito” (1974, p. 186; grifos meus).
Em suas múltiplas dobras e desdobramentos, o texto serguilhiano constrói um diálogo com o barroco, não o barroco histórico, seiscentista, vincado pela Contrarreforma, mas com um conceito estético extemporâneo que é mencionado amiúde ao longo do texto. Aqui, novamente, evidenciam-se enlaces com Gilles Deleuze e sua leitura do barroco a partir de um movimento operatório central: fazer dobras. Em sintese, o barroco ou a dobra prolongada ao infinito: nervuras, pregas, proliferação de palavras, hidra vocal, desmembramento, páthos do excesso.
Importa igualmente ressaltar que o “animal-poema” convoca o leitor a explorar uma multiplicidade de vocábulos incomuns, termos científicos, oriundos especialmente da medicina e da biologia, que o conduzem a atravessar a “polimorfia selvática-mineral”, presente ao longo do texto. Seleciono um exemplo ao acaso: “as extremidades dos invertebrados e as bicamadas lipídicas das hipnopatias são expelidas nas velocidades imprevistas das escrituras-quase-aceluladas __ os animais fora das geometrias do mundo deslocam os espôndilos mutantes até às enzimas dos purgatórios”. A esse respeito, cabe destacar a própria palavra que intitula a primeira parte do livro, “Ecdysozoa”, que pode ser definida como “um grupo de animais protostômios que reúne os artrópodes, nemátodes e outros sete filos, incluindo organismos que devem se desfazer do exoesqueleto antigo e formar um novo para poderem crescer”. Este conceito se enlaça ao termo “epidemia” presente no título do livro, traçando uma rede que reverbera nas suas linhas finais, com a referência a um tipo de mosquito transmissor de vírus: “a inacessibilidade primitiva do poema está aí, metamorfoseada na expectação de um rosto picado e bordado pelo MANSONIA”. Trata-se, portanto, de contágio, transmissão de epidemia através de marcas escarificadas no corpo do leitor ao longo da leitura, “enxertaduras”, “atravessamentos fervilhantes”; e mais: “larvas de insectos incendeiam-se no cório do poema sem lugar porque se compõem na duração ruminante”.
Finalizo sem concluir, recorrendo novamente a Blanchot:
[…] a leitura não faz nada, não acrescenta nada; ela deixa ser o que é; ela é liberdade, não liberdade que dá o ser ou o apreende, mas liberdade que acolhe, consente, diz sim, não pode senão dizer sim e, no espaço aberto por esse sim, deixa afirmar a determinação perturbadora da obra, a afirmação que ela é – e nada além disso. (BLANCHOT, 1955, p. 257-8)
Assim, inspirando-se no pensamento blanchotiano, este texto, em vez de propor um estudo crítico sobre o livro Falar é morder uma epidemia, não pretende interpretá-lo, tampouco acrescentar-lhe nada, colocando-se sob o signo da busca de uma simples afirmação do que a obra serguilhana é. Sim, um convite à leitura.
… desde que as saídas sejam múltiplas…
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Ana Lúcia M. de Oliveira, mestre em Literatura Brasileira (UERJ, 1992), doutora em Literatura Comparada (UERJ, 1999), é professora associada de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora no programa PROCIÊNCIA da UERJ/FAPERJ e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Traduziu e/ou coordenou a tradução de várias obras filosóficas, das quais se destacam: Caosmose, de Félix Guattari; Ensaios sofísticos e O efeito sofístico, de Bárbara Cassin; Mil platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari., É autora de Por quem os signos dobram: uma abordagem das letras jesuíticas (EdUERJ, 2003) e organizadora das obras Linhas de fuga: trânsitos ficcionais (7Letras, 2004); Antônio Vieira: 400 anos (EdUERJ, 2011); Cartas e papeis vários, tomo I, volume 5 da Obra Completa do Padre Antônio Vieira (Lisboa: Círculo de Leitores, 2014; São Paulo: Loyola, 2014) e Figurações do real: literatura brasileira em foco VII (Belo Horizonte, Relicário, 2016).
Foto de Luís Serguilha por José Lorvão.
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