Caríssimos ferrolãos e ferrolterrãos (e no neutro incluo damas e cavaleiros, nada de repetir em masculino e feminino como fazem os que desconhecem as falas filhas do Latim); caríssimos todos:
Aqui me tendes em condição de escrivão, mais de ofício que por inspirado, a falar-vos por convite do alcaide e outros principais desta vila que os cascarilheiros invejosos chamam Podre (como se eles não soubessem de podrémias, sobre tudo de gerifaltes tão podres que o mesmíssimo Satanás já lhes tem acomodo nos Infernos da Política).
Venho-vos convidado pelos que mandam em nome do povo, não pelo bispo de Mondonhedo, que, além de bispo é de fora; mas não coma mim, que de fora sou mas também de dentro, mesmo de dentro de muralhas pois criei-me na que fora Porta Nova de Ferrol.
E por aí vou começar: pelo Ferrol dos barcos e dos sonhos de alto mar, no que se recordam enormes navios a darem nome a uma pátria que chamam Espanha, mal pagadora para as gentes inventoras e obreiras desta terra.
Este lugar curioso acolheu a muitos que, coma mim, vinham de longe mas ficárom para sempre marcados pelo ser diferente, único, desta grande vila e a sua contorna. Houve um mestre das letras inglesas, Graham Greene, que, falando latim macarrónico, disse “England me fecit”: “Inglaterra fez-me”. Emulando-o, Gonzalo Torrente, mestre maior das letras castelhanas (e mágoa que não o fosse das galegas, pois a sua obra está cheia de substância galega, mesmo ferrolã), disse “Ferrol me fecit”.
Eu, apenas prático das escrituras, confesso que, também, “Ferrol me fecit”; e cuido que já o demonstrei com um romance no que Ferrol não precisa ser mencionado, mas que é todo Ferrol, Ferrolterra, um mundo que vai do Ortegal ao Eume.
Em Ferrol aprendi as primeiras letras, na escola primária dérom-me para leitura o Cien Figuras Espanholas, que já assinalava Conceição Arenal como mulher única na História duma Espanha que, com olhos madrilenos, não acaba de ver Ferrol em toda a sua importância no mundo.
Em Ferrol, no Instituto Conceição Arenal, convivi durante uma década com rapazes de “dentro de portas”, de “fora de portas” (da cidadela), desta banda e da outra banda da ria. Companheiros meus de brincadeiras e estudos, amigos marcantes, viriam ser personagens ativos numa mudança histórica na nossa sociedade.
Por dar algum nome, eis João Rubia, companheiro de aula, ou Vicente Aráguas, companheiro de liceu e da Praça de Espanha (como assim se rebatizara o espaço da vila ao que cheguei quando nele ainda mandavam as leiras com verças e batatas); e não esquecerei o companheiro de brincadeira nessa praça, e nos eidos eumeses, que se deu em chamar Andrés do Barro.
Escolho esses nomes de bardos, trovadores, jograis, poetas, mestres da guitarra só como exemplo dos que me obrigárom a ser como sou, pois com eles participei no que mais preocupava os esbirros do generalíssimo Cerilhita, também chamado Franco pelos que não conheciam nomes do Ferrol castiço. Nós gritávamos o renascer duma cultura poética e musical.
A última vez que dei discurso nesta cidade única, na sua Praça de Armas cheia, esperava a que eu acabasse de falar, para ela cantar, uma cascarilheira que se atrevera a dizer que o galego não serve para a canção, uma nachinha que seica lhe chamam Marta Sánchez, que desentoa em castelhano e cuida que o faz em inglês.
E hoje vem-me à memoria esse momento, o discurso em que falei do “português mais galego de todos”, o professor Manuel Rodrigues Lapa, porque vos vou falar dos ferrolãos que mais fizérom pela língua galega, os que mais longe a levárom pelo mundo: Andrés do Barro e Ricardo Carvalho Calero, nunca reivindicados davondo.
A ficha da brigada social da polícia franquista assinala-nos aos que andávamos no movimento da canção galega como perigosos ativistas culturais, sobretudo o Andrés do Barro, porque, apesar do que disse a Marta pequerralha, o Andrés conseguiu quatro discos de ouro em Espanha cantando em galego, enquanto o seu admirador (e admirado, que a admiração entre eles foi mútua) Joan Manuel Serrat não chegava ao ouro nas vendas cantando em catalão.
Desde os tempos medievais que hoje celebramos, de Ferrol não saiu um trovador que enchesse com a sua trova os ouvidos, as almas e as bocas de todos os espanhois. Espanha inteira aprendeu a dizer “Corpinho jeitoso, tenho saudade, o trem que me leva, rapazinha nova…” graças ao génio dum rapaz de Ferrol. E chegou a onde os antigos jograis não conseguiriam chegar pois daquela o Novo Mundo era só uma suposição além do Mar Tenebroso. Do Barro fez cantar em galego as Américas. México, Brasil e a Argentina cantárom o que ele oferecia com voz escassa e carradas de coração.
No próximo ano 2017 Andrés faria 70, mas não viveu para ser um velho respeitado como o Joan Manuel Serrat. Outro ferrolão cheio de talento, músico como poucos deu a Galiza jamais, Antom Seoane, tem preparado um disco de homenagem ao amigo ido antes de tempo. Pronunciar o nome Seoane, lembrar Milhadoiro, e associá-lo à máxima qualidade duma produção musical é imediato.
Se a isso acrescentamos que o disco vai acompanhado por uma biografia do Andrés que escreve Vicente Aráguas, podemos imaginar a perfeição do que juntam três ferrolãos de talento esmagador. Mais, fora do futebol (que é droga das massas, feitiço dos povos modernos), seica não há dinheiro.
Estamos em consegui-lo para pormos a andar a produção do disco-livro de honra ao Andrés do Barro que assinam Aráguas e Seoane. Aqui e agora proponho uma coleta, que deveria iniciar-se no concelho em cujos registos de nascimento ficam assentados esses nomes…
Ferrolãos e ferrolterrãos nados na vila, vindos de fora coma mim, todos: Ferrol não é bem tratado fora de Ferrol, em cidades como Madrid ou Santiago, lugares sem mar, sem possibilidade de sonharem mundos de além dos ventos e as ondas. Tal como Madrid condenou à destruição uma indústria naval que custara séculos levantar, Santiago esquece o que ferrolãos senlheiros fizérom pela cultura galega.
Compostela tem muito de toco de toupeira e as toupeiras não entendem de luz, de brilhos. Por isso nunca haverá homenagem de toda a Galiza nem ao Do Barro nem ao Carvalho Calero, a não ser que as hostes ferrolãs, descendentes de irmandinhos e de sindicalistas anarquistas, algum dia se apresentem no Obradoiro e em São Caetano a mostrarem os seus poderes.
E digo no Obradoiro e em São Caetano porque é onde reside o verdadeiro poder. Por que ao Andrés do Barro nunca se lhe concedeu, tristemente a título póstumo, nenhuma das medalhas com que o Governo Galego enaltece valores de galegos sem igual? Que méritos têm cantantes que nem invadírom amavelmente a Espanha com a sua arte e nem estão vigentes cinquenta anos depois dos seus triunfos? Quanto há de silêncio desta cidade, e da sua comarca, acerca do Andrés Lapique Dobarro?
Aos finais da Idade Meia um mestre da poesia culta castelhana reconhecia que, até pouco antes, aqueles que quisessem trovar na Castela haviam de o fazer em “lengua galiciana”. Pois no último terço do século XX, um ferrolão volveu-a pôr na moda em Castela e noutros reinos das Espanhas.
O fenómeno das baladas do Andrés do Barro foi observado com curiosidade crítica pelo grande professor da língua galega que nascera na rua de São Francisco do Ferrol Velho. Não tardou em dizer-lhe a quem vos fala que aqueles versinhos cantados tinham tal repercussão que podiam fixar idioma, pois os idiomas fazem-se por repetição de formas que ganham adeptos.
O professor Ricardo Carvalho, filho do Ferrol Velho, fez com o galego duas coisas fundamentais: depurá-lo, levando-o às suas origens, liberando-o dos castelhanismos que o converteram em castrapo; e projetá-lo ao mundo, com ajuda do professor Manuel Rodrigues Lapa, catedrático português, e do professor Ernesto Guerra da Cal, catedrático em Nova York, outro ferrolão ao que nunca a Galiza reconheceu méritos davondo.
Só a inveja das toupeiras compostelãs (que compostelãs fazem-se todas à procura de prebendas) pode dar explicação à guerra que lhe fizéron a Carvalho Calero, que as ofendia com a sua brilhante mordacidade quando as avisava de que o galego “ou é galaico-português ou é galaico-castelhano”.
Em 1983, quando se fixou a norma atual do idioma, triunfou o galaico-asturiano, por não lhe chamarmos galaico-castelhano. Isso faz com que hoje todo o mundo, começando pelos insensatos e insensíveis que assim se apelidam, pronuncie Rakhoi e Feijhó o que se deve pronunciar Rashoi e Feishó. Já com a retranca que o distingue, o Carrabouxo pintou o Mariano da Víri de Pontevedra com a frase “Soy Mariano Rajoy y voy a Raxoi a una junta de la Xunta”…
A argumentação de Carvalho, Guerra da Cal e Lapa a favor da ortografia histórica do galego serviu para que algumas toupeiras galegas e uma toupeira asturiana (metida no que nunca se lhe deve permitir a um galego irredento, como são a metade dos asturianos), carregassem a artilharia com pólvora de Madrid, a do “sano regionalismo”, e triunfasse o que faz do galego uma língua escrita à maneira que lhe custa trabalho ler aos 250 milhões de pessoas que no mundo fórom escolarizadas em português.
Como sabeis, a que poderíamos chamar Irreal Academia do Impaís todos os anos escolhe uma personalidade para o Dia das Letras Galegas. Desde há muito vem-se pedindo aos académicos que escolham Ricardo Carvalho Calero, mas ano trás ano fracassa a sua candidatura. Por que? Porque escolher o professor ferrolão, e lembrar a sua obra ingente, daria lugar a que se desmoronasse a estrutura que permite pronunciar Rakhoi e Feikhó.
Não vou ser eu quem proteste porque o ano passado triunfasse a candidatura de Manuel Maria, amigo entranhável, quem na igreja do castelo de Monterrei me investiu cavaleiro da mais gloriosa das confrarias da galeguidade, a Irmandade dos Vinhos Galegos, nem que este ano triunfasse a do Carlos Casares, quem me salvou das insídias do mouro traidor de Compostela e dos roubos do impressor clandestino de Pontevedra.
Gloria eterna hajam o poeta da Chaira e o narrador da Límia; mas já fede que siga abafada a Luz das Letras galegas da Ferrolterra. E pouco se pode fazer enquanto seguirem vivos e ativos sujeitos que manejam a academia com a ideia pailaroca de que aos galegos bem lhes chega com o castelhano para se entenderem pelo mundo…
E bem, já vos dei maçada davondo, já vos interrompi a festa mais do que se lhe pode pedir a um feirante que veio divertir-se. É-me hora de despedida e vou fazê-lo em referência a outro ferrolão do que pouco se sabe, ao que se deve a direção da greve revolucionária que por maior espaço do mundo se estendeu, a dos peões das estâncias da Patagônia argentina.
Pensemos como pensava aquele António Soto, anarquista nascido ao lado da ferrolã praça do Calhau e que jaz em Punta Arenas, no cemitério do grande porto do Estreito de Magalhães: tenhamos em conta que, quando algo se quer, é preciso juntar a gente e repetir-lhe que todos se devem manter na razão da sua luta. Seriam mil os rebeldes fuzilados naquela toma de postura sindical de há quase um século, mas os sobreviventes conseguírom que se cumprissem as suas reivindicações de operários decentes.
Amigos, que o espírito irmandinho não decaia. Grite Ferrol ao mundo que é diferente e que desta vila carregada de História saírom personagens únicos, inveja doutras vilas que sabem gritar como são. Invejem elas a poesia profunda do ferrolterrão Fernão Esquio, do que vou ler poema de adeus por hoje, e não vai ser cantiga de escarnho contra abades e abadessas luxuriosos, mas uma trova de amor que atravessa seis séculos de História e ainda toca o coração de quem a escuta:
Vaiamos, irmã, vaiamos dormir
nas ribas do rio u eu andar vi
as aves, meu amigo.
Vaiamos, irmã, vaiamos folgar
nas ribas do lago u eu vi andar
as aves, meu amigo.
Nas ribas do lago u eu andar vi,
seu arco na mão as aves ferir,
às aves, meu amigo.
Nas ribas do lago u eu vi andar,
seu arco na mão às aves tirar,
às aves, meu amigo.
Seu arco na mão às aves ferir
e às que cantavam deixa-las guarir,
às aves, meu amigo
Seu arco na mão, às aves tirar,
e às que cantavam não as quer matar,
às aves, meu amigo…
¡Viva Ferrol! ¡Longa vida aos seus poetas: aos que fazem barcos e aos que cantam poemas!
Nota: Este discurso foi lido na Feira Medieval de Ferrol de 2016.
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