Quando cheguei, fiquei surpreendida por não achar flores. Não havia. Nem nos jardins das casas, nem nas florestas.
Tenho que dizer que eu procedo de uma terra na que as flores atestam o horizonte. Há tantas, que fazem parte de nós e nós sentimos nelas. As flores são a minha cor. Aqui sentia-me desbotada.
Calei, porque ninguém dizia nada.
Quando as outras pessoas calam, tendemos a imitar. Somos animais de rebanho, a nossa música acostuma a ser a que tocam e dançamos ao seu som. Não havia música, por isso nem dancei, nem cantei.
Calei.
Em pouco tempo compreendi que nesta sociedade tudo estava programado para um perfeito funcionamento: as pessoas trabalhávamos, recebíamos salário, estudávamos, comprávamos e reembolsávamos cada moeda ganha ao lugar de onde tinha saído. Pagávamos com a própria vida. Progressivamente entregávamos a cor, as palavras, o amor e mesmo a tristeza.
Ganhávamos, em troco, um gesto permanecido de cidadania satisfeita. As remunerações permitiam-nos medir a felicidade com precisão e verificar no número de quartos da nossa casa, no soberbo preço do nosso carro, na roupa marcada com ícones, nas compras desmedidas de comida…. Ainda mais! Havia lojas nas que nasciam os sonhos, e centros comerciais imensos nos que era possível consumir não apenas o dinheiro, mas também o próprio tempo.
Nos centros comerciais também não havia espaço para as flores.
Mas eu calava.
Antes de deixar a nossa terra, a minha mãe explicou que viajávamos porque éramos pobres. Ali não tínhamos casa própria, nem carro, nem roupa na moda, nem comida exótica. Mas havia flores.
Lembro, que numa ocasião, tinha ficado doente por causa das flores. Foi grave, ainda que encantador. Eu era muito jovem, posso dizer que não sabia o que fazia: estaria a mentir. Nesta fome floral repetiria sem duvidar.
Aconteceu numa tarde formosa, depois de um beijo com sabor a néctar, que me deixou com a única vontade de recuperar, de reencontrar, de viver na sensação. Procurei nas pétalas a sua textura, lambi flores, mordi com ternura, sorvi com o prazer do sem-final, na permanência deliciada dum sonho intenso, a engolir cor.
Foi um sonho feliz.
Perdi aqueles deleites em amarguras, ao acordar. A minha mãe chorava, temerosa de perder-me. Eu tremia entre o frio da destruição e a calidez da sensação resguardada.
Quando nestes tempos e desde este lugar lembrava, voltava a vontade de reviver. Anelava intensamente, e não havia flores.
Apenas as utopias me retornam ao mundo das superviventes. As minhas noites estão cheias de cor.
Nunca conto a ninguém. Todos calam. Eu também calo.
Quando o ruído dos moderníssimos carros cessa, quando apagam as luzes os centros comerciais e as vozes dos felizes cidadãos não se escutam, começa a latejar detrás dos muros a causa de toda esta riqueza, a que guarda o segredo da repovoação e aproveitamento desta terra erma e triste.
Na central nuclear morta que nunca morre, na vontade que nos deixa secos, estranhos, artificiais, rotos… lateja o coração das flores e o som chega a mim. Cheiro a cor e fecho os olhos. Flores radioactivas de tons impossíveis segredam na escuridade com tintas de plutónio, mostram as possibilidades de um mundo desnaturalizado, alimentam-se de urânio e morrem antes de que chegue o dia. Mantêm o gérmen na pobre riqueza dos que calamos, dos que não sentimos mais desejo que o do sonho.
You might also like
More from Iolanda R. Aldrei
Primeira Crónica desde Xai Xai: a chegada
Participação de poetas da Galiza no VII Festival Internacional de Poesia de Xai-Xai, Gaza, Moçambique Primeira Crónica desde Xai Xai: a …
“Sofria de acrobofobia…”
"Sofria de acrobofobia..." é um poema de Iolanda Aldrei.