Um galego entende um português?
E um português entende um galego? Falam a mesma língua? Falam línguas diferentes? Escreve-se tanto sobre o tema na Galiza mas quando um galego entra por Portugal adentro, 90% das vezes é confrontado com o portunhol, essa simpatia por parte do português em espanholar palavras portuguesas.
Tenho algumas experiências que são capazes de dar resposta a estas perguntas. Experiências empíricas, é certo, valem o que valem como se diz no discurso oral, sem pretensões científicas ou académicas. Contudo, sou escritora e são as experiências que alimentam a minha imaginação e constituem a matéria do meu trabalho. Assim, partilho um momento que espero que ajude no debate e encontro do galego-português.
26 de Junho 2018
Estou inscrita num curso de Verão na Universidade de Santiago de Compostela. Pelas 20h, depois do primeiro dia de seminários, vou tomar uma cerveja com colegas e professores. À volta da mesa, na esplanada, estão mais de dez pessoas. Sou atraída pela gargalhada forte de um tipo que não conheço. Pergunto quem é e explicam-me que se chama Carlos Labraña e que ele, e o outro sentado ao seu lado, Pablo Nuñez, são actores amadores. Somos apresentados e começamos a falar, eu em português, eles em galego. Contam-me que andam a ensaiar uma peça de teatro infantil escrita pelo Carlos, “O Valo”. Este autor/actor/arquitecto manda vir mais cervejas e diz-me que quer ir a Lisboa com a peça. Eu, já não sei se por causa da minha boa vontade, se por causa do que já tinha bebido, ofereço-me para organizar a grande estreia/internacionalização do pequeno grupo teatral que dá pelo nome de Os Furabolos.
5 de Julho 2018
Saio de uma loja perto da Alameda, em Santiago de Compostela, com uma garrafa de vinho branco das Rías Baixas na mochila. A garrafa que trago às costa é para levar a uma das professoras que me convidou para jantar em sua casa. Ao virar a esquina, encontro Carlos Labraña. Vamos tomar uma cerveja.
No caminho até ao casco velho, diz-me que anda em ensaios e pergunta se tenho alguma data para a grande estreia/internacionalização de Os Furabolos. Não, não tenho novidades, ainda nem comecei a trabalhar no assunto. Engulo em seco e sinto a pressão/entusiasmo/expectativa. Conta-me que tem um carro grande para transportar todo o material que é necessário, e quanto à música e às luzes não tenho de me preocupar. Eu, só tenho de lhe arranjar o que prometera, um espaço/teatro/sala, para ele e Pablo mostrarem à pequenada portuguesa como é que, no meio do deserto, um refugiado árabe convence o soldado de um novo país a derrubar a fronteira que os separa.
Podia desmemorizar-me de repente, dar-me-ia muito jeito dizer-lhe que, afinal, a pequenada portuguesa está habituada ao teatro em português, e podia alertá-lo para a ironia que seria uma peça onde, no palco, um refugiado tenta entender-se com um soldado e, na plateia, o publico não entende nada do que se está a passar. Sinto-me tentada a levá-lo a desistir desta ideia que tive, e confessar-lhe o meu maior receio: ser a única espectadora desse grande momento internacional para Os Furabolos.
12 de Julho 2018
Estou a trabalhar na biblioteca da Faculdade de Historia e Xeografia em Santiago de Compostela. Carlos Labraña envia-me por Whatsapp a imagem do cartaz de “O Valo”, que irá estrear em Setembro numa livraria de Santiago. A minha cabeça rodopia e já não consigo concentrar-me no que estava a escrever.
À noite, vou assistir a uma leitura ensaiada da peça, sem cenários nem marcação de passos, apenas leitura. Fecho os olhos para testar a minha compreensão da língua. É claro que no teatro, assim como numa conversa, a linguagem corporal e a encenação completam a informação. Só com o texto não chego aos 100%. “O Valo”, por exemplo. O que significa em português? Nada. Absolutamente nada. É preciso mudar, dar outro nome à peça. Podia ser “A Vedação”, talvez fosse a tradução mais próxima, mas decidimo-nos por “A Fronteira”. Estou consciente do risco de deixar o galego ser galego, língua próxima mas nem sempre igual ao português, no entanto, decidimos não fazer mais que dois ou três ajustes deste tipo.
17 de Julho 2018
Já em Lisboa, regresso ao trabalho que me caracterizou durante muitos anos: gestão e organização de projectos educativos e culturais. Contacto teatros para a representação de “A Fronteira”, envio propostas para outros espaços como livrarias. A aceitação é imediata. E não é só pelo tema das novas fronteiras e da tolerância, tão necessários discutir no contexto social e político que vivemos. É a língua que passa a ser o centro das minhas reuniões de preparação. Todos os interlocutores com quem falo tiveram contacto com a Galiza, alguns até já lá foram representar. E todos sentiram-se em casa, como se a estranheza do galego não fosse mais do que o reencontro com um certo português. Gil Vicente, lembrou-me a directora de um dos espaços, como se os séculos XV e XVI estivessem próximos e a língua não fosse mais que um território que regressa e se reconhece mesmo depois de todas as transformações e evoluções que o tempo lhe imprimiu.
23 de Fevereiro 2019
É na livraria Arquivo em Leiria que Os Furabolos fazem a primeira actuação. Chegamos cedo e o público também. Ainda falta meia hora para o início da peça e as cadeiras da última fila já estão ocupadas. Vêm crianças com os pais e uma menina com cerca de nove anos pergunta-nos se se pode sentar na primeira fila. O único barulho que se ouve durante a representação é o riso que o texto e as personagens provocam.
24 e 25 de Fevereiro 2019
A Companhia Lua Cheia abre-nos as portas do Teatro Casa do Coreto, em Lisboa. Dia 24 para o público em geral, dia 25 para as escolas. Foram cerca de 150 espectadores e a reacção é a mesma da do dia anterior. Silêncio durante o espectáculo, interrompido por risadas nos momentos próprios, às vezes despertadas por palavras como: parvadas, agatuñar, mentireiros, trampóns, cachiño. Palavras que não existem em português mas que todos percebem porque são parecidas com palavras que conhecem, ou porque estão num contexto que ajuda a descobrir o seu significado. Um jogo intelectual ao alcance de todos, mesmo das crianças. No final, quando os actores vêm ao palco e perguntam se foram entendidos, a resposta é sempre a mesma: SIIIMMMMM! “Onde fica a Galiza?”, pergunta uma jovem que já tinha idade para conhecer a resposta. “Não podem existir barreiras”, comenta outra com os actores. Falam em português, pois se entenderam o galego, pressupõe-se o contrário e não sentem qualquer necessidade de falar portunhol.
27 Fevereiro 2019
Escrevo este resumo ainda com as emoções pintadas de fresco e penso que toda esta experiência tem muitas camadas. O tema da peça, as fronteiras, sai do papel e do palco e ocupa-me. O meu último livro encontra-se publicado na Galiza em português; Os Furabolos actuaram e foram entendidos em galego em Portugal; o tema da peça, as fronteiras e a necessidade de as derrubarmos, acaba por ser a metáfora da minha experiência literária na Galiza, e desta passagem do Carlos e do Pablo por Portugal. A língua não é uma fronteira.
Fura-bolos é um nome que recordamos de uma lengalenga infantil que associa cada dedo de uma mão com a sua posição, função ou tamanho. Fura-bolos é o dedo que os gulosos usam para, discretamente, provarem bolos (quem nunca o fez que atire a primeira pedra). Talvez tenhamos de continuar a furar, continuar a insistir no encontro do galego com o português. Continuar a apostar na exposição das línguas e ver o que daí resulta. Mas claro, furar com delícia, com satisfação, como quem quer provar algo que, à partida, sabe que vai gostar. Como dizem os galegos: tudo isto só vale a pena se passarmos bem.
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