Por convite do Joaquim Pinto de Silva e Ana Miranda, participei no Ateneu Comercial do Porto, no passado 3 de Janeiro de 2017, no debate Galiza e Portugal. Qual (quais) fronteira (s)?, onde falei a partir destes textos que vou ir publicando em várias partes. Quero agradecer enormemente tanto o convite como a camaradagem comum que pairou sobre este debate, tão necessário como prometedor de novos encontros…
Ramiro Torres
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A cultura galega hoje está numa situação convulsa.
Por um lado, temos vários factores que escurecem o presente e o futuro imediato, que podem ser resumidos no que chamaria bloqueio perceptivo da maioria das galegas e galegos a respeito do seu enorme potencial criativo e cultural, devido a questões diversas:
– A falta -quase permanente desde há séculos- de sectores sociais ou classes (como quiserem) dirigentes identificados com naturalidade com a cultura própria (ao contrário do acontecido, por exemplo, na Catalunya ou em Euskadi), assumindo a maioria destes sectores como natural uma condição subalterna a respeito do centro espanhol (Madrid), e a conseguinte adopção dos discursos (mediáticos, sociais, culturais, etc.) dominantes ali como uma forma de ratificarem os seus privilégios na Galiza.
– O desinteresse da maior parte da população galega -influída, por imitação das elites, pela situação descrita anteriormente- por aquilo que não passe pelo centro social e mediaticamente canonizador, que padecem de um provincianismo no melhor dos casos condescendente com o património cultural próprio (arqueológico, linguístico, estético, etc.).
– A incapacidade, até este momento, de criar, desde os espaços basilares da cultura, uma série de discursos e prácticas culturais suficientemente potentes para se tornarem hegemónicas na sociedade galega, devido à persistência, ao meu ver, de uma óptica em excesso resistente, na vez de uma perspectiva assumida de confiar nas próprias capacidades para dialogar em pé de igualdade com o mundo (temos exemplos disto último, mas tendemos a cair colectivamente numa espécie de óptica melancólica e moicana que vem reforçar em grande medida o discurso dominante).
Mas, ao tempo, temos outra série de aspectos que acho merecem ser tidos em conta, relâmpagos de inteligência e criatividade individuais e colectivos que anunciam outros tempos possíveis a cada momento:
– O principal aspecto é a qualidade intrínseca de muitas das manifestações artísticas e culturais criadas aqui e agora. Temos um arquipélago de ilhas individuais e algumas colectivas que sabem alimentar-se livremente, rompendo os moldes dominantes do provincianismo, enquanto evitam instalar-se no resistencialismo como única forma criativa.
– A persistência em determinadas minorias no uso consciente e criativo da língua e doutros sinais de identidade, abrindo-se a todo tipo de horizontes desde uma actitude conscientemente universalista, embora existam claras dificuldades para manter-se autonomamente, por falta de massa crítica de população ligada à cultura e à visão distante por parte da maioria dos poderes públicos galegos (não todos, por fortuna, practicam a cegueira selectiva: há alguns que facilitam os caminhos para a imaginação criativa, nomeadamente a nível municipal).
– A outra face dos problemas para se converter as diferentes manifestações culturais em projectos rendíveis economicamente, é o facto de se favorecer a procura de novas formas com maior independência dos diversos poderes, o que lhes dá uma liberdade (arriscada, mas liberdade) criativa que visa ser um espaço constitutivo de novos tempos, face a outras concepções mais estáticas.
– E não quero deixar de comentar duas das grandes novidades dos últimos decénios: uma delas é a incorporação massiva da mulher a uma maior visibilidade da sua obra, e a um desenvolvimento de ópticas próprias que tem enriquecido notavelmente, por exemplo na poesia, os discursos artísticos. A outra é o facto de termos a capacidade de conhecer directamente diversas criatividades do mundo, algo ao que também ajuda o facto de morarem autor@s em diversos lugares do planeta, como Xavier Queipo, Ramón Neto ou o grupo musical Ialma em Bruxelas, por exemplo…
Os diversos sectores culturais galegos, portanto, estão, em geral, do ponto de vista quantitativo das suas produções, numa situação descendente, desde o 2008-2009, anos anteriores à crise económica que afectou (e afecta) todo o estado espanhol, e à Galiza, em particular, que tem originado uma resposta maioritariamente conservadora na sociedade e a destruição ou redimensionamento decrescente de grande parte das propostas.
Porém, também de maneira geral, tanto a literatura, a música, as artes plásticas, e, em menor medida, por terem maiores dificuldades, o cinema, o audiovisual e o teatro, responderam com maior intensidade criativa nas suas respectivas artes. Aqui há também o resultado de contarmos com a geração mais qualificada de pessoas vinculadas à cultura, que aproveitaram a sua preparação em anos anteriores para darem o melhor de si numa conjuntura cada vez mais esquiva para manter os seus projectos. Muita gente das diversas artes aguarda tempos melhores, enquanto outra continua a criar e recriar as suas actividades como projectos de vida (muitas vezes, isso sim, parcialmente, pois têm que dedicar-se a várias tarefas para subsistirem).
Nessa dialéctica convulsa entre a criatividade mais ampla e as dificuldades para levar adiante todas as suas potencialidades estamos, cheios e cheias de força e também de medo [esse lobo cinzento que acompanha os poderes estabelecidos desde o início da história da humanidade para tentar manter um statu quo determinado em cada momento], entre o fervor da consciência cultural e a incompreensão da maioria do público potencial e institucional com horizontes muito mais conservadores, consumidores passivos de opções lançadas desde o centro da península…
O porvir, então, vai depender em grande medida da capacidade de transformarmos a cultura num espaço partilhado, não só entre as artes, mas também na imbricação com a sociedade, procurando tecer alianças férteis (partindo do respeito à necessária introspecção criadora) que enriqueçam o colectivo numa espiral aberta ao futuro…
Acho que terão reparado em que não falei ainda de nós, desse nós amplo e plural que percebe o Minho como uma artéria vital para a cultura às suas duas beiras…
Como bem saberão, temos uma língua (ou sistema linguístico, como preferirem) comum, embora hajam na Galiza duas perspectivas básicas sobre este tema:
– Uma considera que galego e português estiveram unidos numa altura, mas que os diferentes vaivéns históricos os diferenciaram de tal maneira que hoje é aceite pela maioria da sociedade galega escrever esta língua com a grafia do castelhano, chegando a considerar-se por alguns sectores como uma língua independente do português. Segundo isto, escrever de maneira unificada teria mais problemas do que vantagens (diluição na cultura portuguesa, problemas de reconhecimento dos galegos ao verem escritos assim os seus falares, etc.). Há elementos nesta perspectiva a ter em conta, e merece todo o respeito, ao tempo que também devo assinalar que foi a implementada como modelo de língua escrita tanto no ensino como na administração galega, com o que é a mais usada quantitativamente, o que provocou ser a forma standard habitual recebida pelas novas gerações.
– A outra perspectiva básica considera que continuam a ser, galego e português, formas de uma mesma língua, e acha não só reversível, mas necessário para manter as estruturas próprias e genuínas do galego, achegar, reintegrar, a sua escrita no tronco comum, como uma parte mais desse arquipélago chamado Lusofonia, mantendo (em maior ou menor grau, aí também há diferenças de critério) determinadas formas e fórmulas próprias para tentar evitar os eventuais problemas que se assinalavam antes. Esta perspectiva teve um seguimento menor em número de utentes, mas vai ganhando qualitativamente espaços, apesar (ou, quem sabe?, talvez precisamente por isso) de não ter qualquer apoio público e avançar autonomamente.
Bom, cada vez é maior o número de pessoas que reconhecem(os) a validez das duas perspectivas nalguns pontos, embora sigamos mais alguma delas, e a necessidade de abandonar isolacionismos medonhos para abraçar as imensas possibilidades que uma maior interacção com o espaço cultural lusófono, também como maneira de compensar as dinâmicas assimiladoras que o castelhano comporta na Galiza (começando, mais uma vez, pelas suas elites). Temos na contra a inércia histórica (acho que não é ousado aqui lembrar o que se passou em Portugal entre 1580 e 1640: imaginem agora o peso de mais 370 anos com essa dinâmica operando…), mas também temos a favor uma relação directa entre nós que patenteia o dever de aproximar-nos com total liberdade para usufruirmos em comum o que nos vem dado naturalmente…
Perdemos demasiado tempo de costas viradas, quando não de olharmos com desconfiança para um Outro que realmente é um Nós. Não nos atrevemos a criar o nosso discurso partilhado, atravessando os muros invisíveis que tivemos medo em reconhecer como tais: pura invenção interessada de dois estados, o espanhol e o português… E precisamente acho que estamos num momento propício para fazê-lo.
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