Gigante na humanidade e imenso na escrita, o Germano gasta bisturi bem humorado. Encobre várias sabedorias mas indissimula um conhecimento profundo de terra e gentes das ilhas dele, para lavrando frases limpas entrar nas vidas públicas e privadas –e acima de tudo, contar. Assim leva mais de trinta anos historiando esse mundo e provando que é um magnífico escritor, à cabeça de uma etapa completamente nova na rica literatura do seu país. Seu o fabuloso capítulo 6 no pluriautoral O Crânio de Castelao, por se alguém por estes lado não tinha catado. E agora aqui outras sugestões do seu individual fabrico, a partir da conversa que cordialmente concede.
Germano de Almeida (ilha da Boavista, Cabo Verde, 1945), licenciado em Direito em Lisboa, passou a exercer advocacia na cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente, protagonista do seu último romance. Estreou-se como contista no início da década de 80, colaborando na revista Ponto & Vírgula e editando os primeiros livros de uma produção e atividade literária continuadas: O dia das calças roladas (1982), O Meu Poeta (1989). Mas foi com O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo que arrancou uma projeção em breve mundial: premiado pelo Instituto Marquês de Valle-Flor, vários países compraram os direitos do romance, que se publicou no Brasil, na Itália, França e outros países, e o livro passou a filme, por sua vez distinguido no Festival de Cinema Latino-Americano de Gramado, Brasil, também designado para melhores filme e ator no 8º Festival Internacional Cinematográfico de Asunción, Paraguai. Da década de 90 são ainda outros cinco livros: Estórias de dentro de Casa (1996), A morte do meu poeta (1998), A Família Trago (1998), Estórias contadas (1998), Dona Pura e os Camaradas de Abril (1999). E no que vai de século, ao lado de novos relatos e romances de ficção, alarga em livro a sua prática jornalística (já premiada pela Crítica da Imprensa de S. Paulo em 1996) à historiográfica: As memórias de um espírito (2001), Cabo Verde – Viagem pela história das ilhas (2003, uma exposição histórica das nove ilhas habitadas de Cabo Verde), O mar na Lajinha (2004), Eva (2006), A morte do ouvidor (2010), e De Monte Cara vê-se o mundo (2014). Junte-se ainda o intervencionismo ativo e vário na vida cultural cabo-verdiana: na fundação, com Rui Figueiredo e Leão Lopes, da revista Ponto & Virgula, do jornal Aguaviva de que é co-proprietário e diretor, da Ilhéu Editora, no cargo de Procurador da República em Cabo Verde por que passou, no colaborar com regularidade na imprensa portuguesa. Editado numa dúzia de países, traduzido em nove línguas, aqui podemos ler todos os seus livros.
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Carlos Quiroga: Depois da Claridade, da solenidade, da elegia social com seca, fome, miséria interminável e povo sofredor, veio O Meu Poeta com uma sátira extraordinária da realidade cabo-verdiana e foi inaugural de uma nova época na literatura do teu país. Para uma nação que tem uma capacidade imensa de gozar a vida faltava à literatura o tom descontraído e ao mesmo tempo mordaz que tu lhe brindas?
Germano Almeida: Na realidade, antes de O Meu Poeta tinha publicado O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, considerado pela generalidade da crítica como algo novo no conjunto da literatura cabo-verdiana pela diferente perspetiva com que o livro encarava o homem das ilhas. É que somos por natureza um povo bem humorado e esse humor não aparecia na nossa literatura, mais preocupada com as fomes e as secas e a miséria das doenças. Ora sempre defendi que após a independência nacional ficávamos obrigados a ver o nosso país noutras dimensões que não fossem as exclusivas das catástrofes que ao longo dos séculos nos tinham assolado, pois que essas mesmas catástrofes tinham contribuído para nos temperar na resistência para a sobrevivência.
Já O Meu Poeta é uma sátira à realidade que se viveu a seguir à independência, a luta às vezes feroz para se obter a sobrevivência política a qualquer preço, os oportunistas que sem vergonha se juntaram ao PAIGC/CV em busca de tachos e que para isso estavam dispostos a submeter-se e aceitar qualquer humilhação, desde que lhes fosse de utilidade.
Nada há mais demolidor que uma esplêndida gargalhada? Fugir da gravidade é a forma mais corrosiva de evidenciar a impostura? Quando escolhes algo para contar esforças-te por descobri-lhe um sorriso?
Em boa verdade não me esforço muito para descobrir o lado risível das situações, esse lado está lá presente e exposto, admiro é que todas as pessoas não o vejam. Mas também pode ser que essa capacidade advenha de uma natural maneira de ver o mundo, tentar surpreender o lado risível das situações, o que também me parece ser uma característica do povo a que pertenço.
A obra, e outras, para além da sequela A morte do meu poeta, não são também de denúncia?
Escrevi O Meu Poeta e também A Morte do Meu Poeta com um nítida intenção de denunciar o oportunismo político de um grande número de pessoas no meu país. Escrevi também O Dia das Calças Roladas para denunciar uma grave situação de injustiça que se praticou na ilha de Santo Antão contra um grupo de homens acusados de tentativa de golpe de Estado. Mas os demais livros tiveram como objectivo apenas contar estórias das minhas ilhas. É evidente que a predilecção para contar esta estória e não outra pode evidenciar alguma forma de denúncia de alguma coisa, sem que no entanto tenha sido esse o objectivo.
Virtuoso da ironia, também ternurento, mas nunca doutrinário quando narras?
Penso que um contador de estórias tem pouca margem para doutrinar. Evidentemente que as próprias estórias podem conter mensagens mais ou menos discretas ou mesmo claras, mas doutrinar não é uma preocupação. Quanto à ironia, tem muito a ver com a própria natureza de quem escreve, é certo que muito poucas situações da vida não terão um lado risível, mas depende sempre do ponto de vista de quem observa essas situações.
Ao português senta-lhe bem uma pitada de crioulo? A tua fórmula é de uso instintivo ou premeditado?
Misturo o português com o crioulo de forma absolutamente instintiva. Acho que tem muito a ver com o facto de contar estórias e ter sempre um interlocutor, melhor, um ouvinte e que deve ser um cabo-verdiano. E não faço qualquer esforço para falar (escrever) daquela maneira porque sei que a pessoa me ouve e entende. Algumas vezes acontece é o contrário, o texto ficar praticamente em crioulo, surgirem na escrita formas de falar em crioulo que eu mesmo não sou capaz de dar uma aproximação ao português.
Preferes a filigrana concisa, como as crónicas reunidas em Estórias Contadas, ou conectar tudo no sistema amplo de um romance?
Não posso dizer que tenha uma preferência especial, é a própria estória a definir o seu modelo e tamanho. Tenho alguns contos escritos, gostaria de escrever outros de modo a formar um volume publicável, mas simplesmente não sai, pessoalmente não sou eu a definir à partida o que quero escrever. Bem entendido que quando quero escrever uma crónica delimito na minha cabeça o assunto e já sei que não posso exceder aquele episódio.
Continuas a afirmar-te como contador no lugar de escritor? Continua a interessar-te acima de tudo ter uma estória e alguém a quem a contar? E continua sendo a estória a tua prioridade, até ao ponto de que forma e recursos estilísticos só te importem pela eficácia para esse contar?
Continuo a afirmar-me contador de estórias e não é por modéstia. Só me sento a escrever quando tenho algo a contar e “alguém” a ouvir. Confesso que me rio desses escritores que se torturam frente ao papel ou ao écran porque sentem-se no dever de produzir algo e nada sai. Ora eu não me sinto com deveres a esse nível. Se não tenho o que escrever, há imensas outras coisas que posso fazer para ocupar o tempo com igual proveito.
Fundidos de descrição, narração e diálogo, saltos temporais, técnica rápida e impressionista de caracterizar personagens, fluência e coloquialidade narrativa… É o velho contador de A Ilha Fantástica, nho Quirino, o teu mestre de escrita? Deves à herança e tradição oral cabo-verdiana a tua originalidade literária?
Pois, não será bem originalidade, pois que desde sempre intuía e acabei por assumir isso conscientemente, que se queria contar estórias tinha que regressar aos contadores da minha infância. Eu escrevo, mas na realidade estou a falar com alguém a quem conto as estórias. Daí a coloquialidade da linguagem, o frequente recurso ao crioulo ou ao aportuguesamento das palavras em crioulo.
Como te sentes sem a liberdade ficcional? O Dia das Calças ou Viagem falam da cabo-verdianidade do modo que não podias com estórias?
Na realidade estou muito mais à vontade na ficção, com todas as liberdades que ela oferece. A mistura da ficção com a realidade permite uma liberdade que só esta não dá. Por exemplo, acho mais fácil falar ou expressar a caboverdianidade através da ficção do que através da história, porque esta manieta-nos dentro de fórmulas, enquanto que a outra liberta-nos para um lado que pode parecer inventivo mas que vive da nossa idiossincrasia nacional.
Começas a escrever aos 16 anos, para te defender de fantasmas?
É uma longa estória e nada edificante: tinha medo dos mortos! Isso porque tinha estado a morrer no mar quando menino. De modo que resolvi escrever sobre um naufrágio como forma de afugentar os defuntos. Foi a minha primeira estória escrita, mas perdi-a.
Sabes por quê começas, mas sabes por quê continuas na escrita? Ainda há fantasmas que afastar? Há agora responsabilidades? Continuas a escrever fundamentalmente por prazer e para te divertir?
Pode parecer politicamente incorreto, mas na realidade não me sinto com especiais responsabilidades na escrita. Escrevo pelo prazer de escrever, inventar ou efabular uma estória que aconteceu, contar estórias em que os leitores dizem reconhecer as pessoas, muitas delas que eu sequer conheço. Dá-me de facto prazer fazer isso. Já não tenho fantasmas, nunca tive vontade de agradar, tento fazer o que me vem à cabeça, até porque sequer acredito na especial responsabilidade do escritor perante a sociedade, isso foi chão que deu uvas.
Eva foi em 2006 o teu décimo quarto título e confrontou muita coisa, lusitano com cabo-verdiano, político com privado, amor com traição, emigrado com retornado… De entre a complexidade de reflexões que pode provocar, um cabo-verdiano é incapaz de ser feliz longe das ilhas? Existe uma saudade cabo-verdiana específica?
Sim, o cabo-verdiano no geral não é feliz longe das ilhas. Daí que os emigrantes estão sempre a sonhar com um definitivo regresso à terra, o que para muitos fica depois impossível. Claro que depois da independência, as coisas ficaram mais fáceis com o desenvolvimento dos meios de comunicação. Modernamente pode-se estar nos Estados Unidos hoje e amanhã em Cabo Verde. O telefone, a televisão com as notícias da terra, tudo isso contribui para diminuir o peso da saudade. Mas acho que a específica saudade cabo-verdiana tinha muito a ver com a “terra longe”, isto é, com o tempo em que uma viagem dos Estados Unidos para Cabo Verde durava 15 dias e nenhum trabalhador tinha dias de férias suficientes para isso.
Ainda sobre Eva, a incursão na infidelidade feminina não é frequente na literatura cabo-verdiana. Querias subverter o tópico masculino? Há proximidade entre Eva e a Alda de As Memórias? Eva poderia não ser portuguesa?
Sim, certamente que a Eva bem perfeitamente poderia ser cabo-verdiana. Mas também de qualquer outra nacionalidade. A pouca frequência do tema da infidelidade na nossa literatura não significa a sua não existência na nossa sociedade. Parece é haver algum pudor no seu tratamento, é a ideia de sermos uma sociedade pequena onde todos se conhecem uns aos outros e logo se vêm retratados nas estórias. É natural puder haver proximidade entre personagens de livros do mesmo autor, mas confesso não ter parado para pensar nessas duas em concreto.
Os Dois Irmãos procede também da história real, fratricídio e julgamento em que tu representavas o Ministério Público desde a acusação. Também O Dia das Calças. O mundo da justiça abre para o escritor janelas de privilégio sobre a vida das pessoas?
Eu não falaria em janelas de privilégio nos casos referidos. Na verdade, no caso dos Dois Irmãos foi uma estória real que me perturbou imensamente e neste momento dou-me a corrigir a minha afirmação anterior sobre os fantasmas, porque a estória daquele rapaz perseguiu-me durante anos, até a conseguir escrever. Foi uma espécie de reparação que achei que tinha ficado a dever-lhe. Não foi esse o caso do Dia das Calças Roladas, porque aqui quis denunciar uma situação de injustiça flagrante de homens presos e condenados por um crime impossível.
No teu último Do Monte Cara Vê-se o Mundo, o Mindelo é o tema, e apoias-te nas estórias de uma galeria de personagens chefiadas pelo velho Pepe. Completa o ciclo sobre a cidade que abriu As Memórias…?
Não diria que completa o ciclo sobre Mindelo porque na verdade os livros não têm sido pensados como fazendo parte de um ciclo, pelo menos em termos de pensamento consciente. Agora, é verdade que tenho-me preocupado em dar diversas imagens de Mindelo, cidade complexa que não poderá ser compreendida se for vista apenas numa dimensão.
Acaba o espaço e não quero esquecer uma ritual pergunta: como correram as tuas visitas à Galiza e o que achas desta periferia européia?
Já estive na Galiza duas vezes, sempre em Santiago de Compostela. Criei lá bons amigos, entre os quais estás tu. Bem, eu tinha já uma boa ideia dos galegos, porque quando ainda adolescente naufragou um barco na costa da minha ilha e desembarcaram uma leva de marujos que foram levados para a vila e com quem entramos em grandes conversações. Falavam português quase como os portugueses e entendíamos tudo. De modo que fui até lá predisposto a gostar e realmente adorei a cidade de Compostela e as pessoas com quem convivi das duas vezes. Quanto à periferia, seja europeia ou outra qualquer, acho algo muito discutível. Por exemplo, para mim, o centro do mundo é Cabo Verde, sem tirar nem pôr. Claro que outros acharão que a sua cidade ou povoado é o centro do mundo, e eu entendo que sim, tudo é relativo. De modo que nunca consideraria a Galiza como periferia europeia.
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