“A laje é o mirante da quebrada”
Renan Inquérito.
Se há um acontecimento que confirma a máxima que “periferia é periferia em qualquer lugar” é ato de encher uma laje, o teto nosso de cada dia. É como uma epopeia, encher laje tem lá seus pontos altos, dignos de entrar no rol das grandes histórias universais ou, pelo menos, das prosas de buteco e do churrasquinho no fim de semana.
Aqui o herói é o “mestre de obras”, conhecido mesmo como pedreiro. Sem ele não há laje, ele monta, agenda a data, chama os aliados pra mexer o concreto e fica responsável por espalhar a massa na hora de cobrir a bendita.
Tem pedreiro que é enrolão, mas no dia da laje, sendo picareta ou não, é sempre o primeiro a chegar, supervisiona tudo e garante o serviço, mesmo que a gente saiba que toda laje que se preze há de ter vazamento um dia.
Os donos da goma também são importantes, seja pela prece do dia anterior pedindo sol, ou convocando os amigos pra carregar o concreto e, principalmente, pra agilizar o rango, pois encher laje sem uma feijoada com caipirinha no final é como ir no buteco pra beber cerveja choca.
E além das figuras que aparecem com suas experiências de lajes passadas, há aqueles que não são lá muito bons de lombar lata, mas são essenciais pro ritual. Eis aqui alguns:
Furão: Fala, agita, confirma com todo mundo e só aparece nos comentários rancorosos, porque nunca dá as caras.
Migué: Sempre aparece. Conta história, piada, tira sarro, mas ajudar mesmo… Porém, faz a rapaziada rir e deixa o ambiente descontraído.
Xêpa: Chega às 11 da manhã, preocupado com o rango. Personagem que inspirou o provérbio “Pra comer é um leão, mas pra trabalhar…”.
Engomado: Vem vestido pro baile de debutante. Não sabe fazer massa, carregar concreto, espalhar a massa, assar carne, nem fazer caipirinha. Só estorva, mas é motivo de boas piadas.
Penetra: Não foi convidado, mas chega junto e dá a maior força. Todo mundo sabe que ele vem pela festa, mas com ele ninguém arrasta, porque esse vem com vontade.
Engenheiro: Nunca estudou o ofício, mas tem espírito pra coisa. Não ajuda, não bebe, não come, mas fica dando palpite e corrigindo os outros. Além disso, tem mania de ficar gorando chuva.
E sem essas ilustres presenças tudo fica sem graça, porque não é só de concreto e lajota que se levanta um teto, nénão?
A laje é um totem familiar, que marca a identidade e o cotidiano de cada goma, pois quando a última lata de concreto sobe, logo surge a intenção de um varal pra estender roupa, um espaço pras festanças, pra mulecada brincar, desbicar um pipa, ver o movimento, tomar sol, mirar a lua, prosear sobre a vida e fazer as unhas, até que venha um novo puxadinho e essa laje vire chão, morada e sorriso de mais um membro da família.
Michel Yakini é escritor e produtor cultural.
NOTA: a foto do autor é de Sonia Bischain.
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