Ontem soubemos que um dos vultos da poesia europeia contemporânea, o poeta português Herberto Helder, iniciou o caminho de retorno. Se calhar ele nunca chegou a saber até que ponto foi o grande referente da poesia moderna para alguns de nós, neste pequeno país chamado Galiza que, sendo o berço certo da lusofonia, esquece cada dia a sua cultura enquanto sorve desesperado as essências da poesia. Somos assim, contraditórios até ao paroxismo, e isso talvez é que nos faz humanos e divinos, efémeros e eternos.
Obscuro e luminoso ao tempo, Helder foi um exemplo de compromisso com o trabalho interior que a poesia impõe, e que pouco tem a ver com a literatura, esse objeto mercantilizado que coisifica a espiritualidade da arte, mede o esforço, calcula os ganhos e contabiliza os aplausos: «[…] O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós […]». Por isso nós hoje queremos escrever tão só umas breves linhas de homenagem, breves, seguindo a recomendação do mestre, porque é que a nós, mais do que a ele, dirão respeito.
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Palavras para a viagem de Herberto Helder, o poeta, o amigo
Hoje todos os jornais deram a nota
E eu ri ás escâncaras pelo orvalho dentro
Com a notícia falaz da tua morte
“Transforma-se o amador na cousa amada”
Com o seu feroz sorriso os dentes
Com a lua pendurada dos cabelos
Morrer?
Não acredito
Não gosto das palavras: “Grande perda”
E toda essa pequena cultura dos letrados
Muita merda!
Hoje estou feliz
Hoje sei que es livre
Depois de longos longos anos de cativeiro
Para ser sincero tenho-te um pouco de inveja
Pois um tem que ficar na casa a cuidar do gato
E também do papagaio azul!
Numa certa altura a nossa mestra chega
Lá vamos embora com a colher na boca
As estrelas na púrpura do peito
E umas cócegas e uma inquietação por todo o corpo
A grande mestra da vida
Grande ganância, meu amigo!
Pois já chegamos ao zero e ao menos que zero
Sempre tiveste vocação de número negativo
Vai embora para o grande enigma
Franjado de infinito
Obrigado, amigo.
Estamos em contato
José António Lozano
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Na morte e na vida de Herberto H
Que dizer como dizer-te, Herberto Hebraico, ora no Funchal, ora na Corunha,
aquelas 1.001 noites de há 1.001 dias
em que eu me percorria o sangue
e percorria toda a tua vida, ora no Funchal, ora na Corunha,
horas
em que tu te perdias lâmpada das lâmpadas
e eu me achava
sôbolos rios que vão
pela tua vida.
Pedro Casteleiro
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Para Herberto Helder
O poema arde desde uma distância absoluta, dança com a sua faca inversa entre os dentes sobre o fulgor unânime dos vulcões. Vence a estatura do tempo com o seu corpo inextinto, extravertido para o infinito no líquido vermelho que inflama o sexo das palavras.
Nesse caminho impossível, onde um relâmpago nos eleva ao conhecimento, somos cobra convertida em lâmpada interior, enquanto volvemos nascer em cada verso, dessangrados de toda razão no amor obscuro e fértil da estrangeirice mais convulsa.
Ramiro Torres
A vida sem morte
O Herberto Helder de tanto descrever o espanto
se tornou um animal convulso e extasiado
que em fim só quis ser um homem.
Não me admira por isso que nos poemas
devore os dedos em quanto conta
o que resta para o próximo assalto,
monstro octogenário catapultado da infância
que espreita passadas infâmias,
brigas em que falece e renasce
enquanto amamenta uma mágoa.
Alfredo Ferreiro
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