Virna Teixeira
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Johan Huizinga no seu Homo Ludens diz-nos que a existência do jogo é inegável. É possível negar, se quiser, quase todas as abstrações: a justiça, a beleza, o bem, Deus. É possível negar-se a seridade, mas não o jogo. Virna Teixeira joga com forças agonísticas, em atrito e adversas por meio de uma voz vinda de um lugar estranho, dilacerador, desconhecido e simultaneamente impulsionada pelo próprio estômago da VENTRÍLOQUA, relembro aqui, a Darci Lynne Farmer no Little Big Shots a cantar ” I Want to Be a Cowboy’s Sweetheart ” juntamente com marionete Katie-cowgirl. Há nos poemas de VENTRÍLOQUA um fluxo bio-zoo-technos, uma hibridização criadora de corpos e múltiplas realidades entre sopros da voz (flatus vocis), o “dar significado” (Sinngebung) husserliano e geografias abíssicas de Vampyroteuthis Infernalis de Flusser e de Louis Bec. Há nos poemas de VENTRÍLOQUA uma violência contida-pulsional, uma reminiscência a apreender o imemorial, por vezes despontam imagens em ressurreição como nos disse Godard. Resvalar no desfazamento das visibilidades das imagens, imagens desaparecem e ressurgem no bisturi da voz que é já materialidde respiratória do corpo e da palavra (Paul Zumthor). Há imagens feitas de palavras e de pulsões acumuladas nos sintomas, nos esquecimentos e nos traumas onde olhares sugam e costuram impulsos das visões que transportam a sabedoria estranha do corpo para o escândalo parresiástico. Virna Teixeira em cada gesto, em cada palavra, em cada atmosfera, em cada vazio e em cada oralidade da voz, ritualiza as texturas da palavra entre o demoníaco, o erótico e o lúdico, criando uma existência expressiva de escutas a invadir e chacoalhar o espírito delirante gerador de tempo. Virna Teixeira mistura forças do indiscernível polifónico com ressonâncias do sentido que absorve vozes velozes e lentas, transformando a visão na dança de uma voz a renovar-se entre outras vozes hesitantes que dizem o inexpressível, dizem quase-tudo, dizem o silêncio impiedoso de corpos em tremenda transmutação e choque: uma só voz de pode conter uma enciclopédia psiquiátrica, um cinerama-cinestéico e um espaço de ondulações irrefreáveis: uma voz VENTRÍLOQUA que por vezes não é de quem a fala, uma voz do chamamento da loucura, de uma aparição inapreensível, uma voz cartográfica a reinventar o mundo em cada espalhamento membranar, uma voz sempre vinda das entranhas vibráteis e conflitivas do corpo que RÉ-existe, estilizando-se com o desconhecido. As palavras rasgam sentidos e fazem mover fronteiras, disseminam e impulsionam enunciados feitos de composições violentas de corpos, de vislumbres e de vários planos de signos visuais, signos insonoros, signos gésticos e corpóreos onde um olho-de-boneca se torna kepleriano, rasga percepções, revive diante de devastações de corpos dilacerados pela normopatia, é um telescópio inominável verbi-vocal audível e inaudível com intervalos solitários, anónimos e anómalos a convergir com movimentos genéticos subversivos e a impulsionar misturações em codificação, por vezes, sentimos na leitura dos textos um fotograma-vocal a traduzir-se e a esponjar-se com modos infinitos a pausar no reencademanento de jogos de vozes sempre por advir vertiginosamente. Há um clarão de rumores intensivos que vêm das vértebras do impossível, percorre traqueias intermitentes, bate nos espelhamentos sangrentos dos palatos e expele pela boca musicalidades vocais da errância e de um entre da desmesura. Há imagens coreografadas e esculpidas por vozes-sopros que pulsam entre si des-centradas e tremendamente energéticas a superar funções linguísticas. Virna Teixeira infiltra-se nos movimentos mutantes dos pintores holandeses Rembrandt e Johannes Vermeer, extrai o infinto de corpos na matéria em êxtase, religa desobedientemente pontos-vozes-da-vocalise a quaquer ponto-voz-por-vir por dentro da relação embrionário-monstruoso(Henri Michaux). Virna Teixeira faz emergir da matéria vozes palimpsésticas, instaura a visão-voz em qualquer movência transgénera e enlaça esse arrasto a qualquer micélio inesgotável, desdobrando vidências. Em VENTRÍLOQUA os espaços ínfimos da boca soltam uma voz, encarnam um acesso ao sentido, quebram distâncias periódicas, rasuram fronteiras, fazem escutar o diagnóstico da desrazão de uma voz corpórea. Dentro de VENTRÍLOQUA, vozes afastam-se também do nosso conseguimento, esculpem pasmos-espantos e se entrecruzam com cortes translúcidos, continuidades e interrupções onde cada palavra-voz faz do leitor um autómato suspenso entre possíveis autómatos de uma linguagem em coexistência cancional, interrogativa e rítmica. Em VENTRÍLOQUA não escutamos propriamente vozes mas ondulações voltaicas das vozes e, para crivarmos os signos que percorrem os textos, seguramos a mão terrífica de uma boneca metamórfica onde às vezes sentimos um canto sem palavras a extrair uma crueza única nas sensações para defraudar a morte e avolumar uma consistência idiomática dentro da estranheza de corpos que lutam pela sobrevivência do diferencial e da insubmissão: não há aqui formas melismáticas, mas um mosaico assombroso a traduzir corpos babélicos com multiplicidade de vozes através do passar de um tempo pulsátil para um tempo prismático, lacerando designações e estereótipos com zonas do impensável mais cruel espalhadas pelo corpo a arrasar o fonocentrismo. Assoma-se fugazmente na imagicidade de VENTRÍLOQUA uma onda de colorismos de Agnès Varda a orquestrar e codificar falas, olhares, corpos e visões, mesclando-se com outras imagens e palavras onde as cores dos objectos se transvertem em maestrinas: Virna Teixeira vocaliza o avesso vitralista com recomeços de rasgos-tessituras no inacabamento dos corpos que exigem paradoxos, alucinações, histerias e passagens assignificantes onde o silêncio ecoante é por vezes ferida testemunhal, não há possibilidade de apaziguamento, a decifração é ininterrupta e cinematográfica. Há musicalidades, cheiros, maquiagens, seduções, úlceras e silêncios entre vozes insituáveis a andarilhar o vazio ressoante da caça das palavras, tentando exprimir os corpos que carregam dentro de si o ventriloquismo do mundo inteiro entre forças espirituais fragmentadas e impelidas para o atordoamento germinal. VENTRÍLOQUA inventa novos tipos de luzes-vozes onde várias línguas de vários corpos a penetram antecipando possíveis linguagens para sair do caos por meio de gritos, expressões, silêncios, sonoridades e vergônteas rítmicas: VENTRÍLOQUA vai ao encontro dos interstícios arrebatadores dos corpos, fazendo-os vibrar, vociferar com suas bifurcações e seus fluxos temporais e o leitor é lançado inesperadamente para dentro das imagens da “M3GAN”: uma boneca assassina. Virna Teixeira mergulha novamente em Zumthor e ressoa-nos: o mundo não esperou pelo ser humano para emitir sons e falas; por meio do ventriloquismo mostra-nos a ambígua e ancestral animalidade em grito quase-insonoro a perfurar e a intensificar a agoridade que sempre nos interrogou dentro da desumanização: a voz inalcançável entre vozes, torce-se, revinventa-se como lapso desejante na espessura da dor de quem se transmuta diante do acaso e do inóspito. Virna Teixeira arrancou intuitivamente aos corpos o intransitável, o nomadismo sísmico, a espessura do respiro, o intranferível, o exílio, as injunções, os gritos das feridas e construiu povoamentos sensoriais por meio de limiares de vozes por detrás de palavras em rasgo: VENTRÍLOQUA de um mundo-corpo-apátrida a crescer carnalmente no mais ínfimo de uma voz em refúgio: entregar a memória amativa, lasciva, lúbrica e devassa do corpo à profecia do impossível através de um compromisso com o silêncio interiorizado na pele já em mutação salaz. Vozes-rasuras no eco de uma hiância atritada pelo esquecimento e pelos rastros das dores de corpos diante da partilha do oculto e da erotização do intraduzível: uma voz de pariduras de agudezas e em repercussão testemunhal a nutrir o corpo que está por regerminar. VENTRÍLOQUA e a dor inenarrável que percorre um corpo.
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