O poeta turco Ali Rustam Çiçek (Kónia, 1918 – Istambul, 1978) é um grande desconhecido, mesmo no seu próprio país, pois não deixou uma obra de publicação regular. O único livro publicado em vida foi numa tiragem de pouco mais de mil exemplares, muitos do quais foram queimados pela represão kemalista. O seu título: “Velas, âncoras e lábios” era uma reivindicação absoluta da liberdade individual através do amor, levando a poesia turca além do formalismo e do decadentismo de influência persa. Compartiu cela com Nazim Hikmet, de quem parece ter recebido uma clara influência, ainda que ele nunca militou nem compartiu as suas ideias comunistas. Sempre considerou a Hikmet como alguém que estava muito acima da sua própria ideologia.
O poema que aqui apresento traduzido, graças à versão francesa de Gilles Fauquier, foi publicado numa revista de príncipios dos anos setenta e é um dos últimos poemas escritos pelo autor (os últimos cinco anos da sua vida deixou de escrever), quem faleceu em estranhas circunstâncias, afogado nas águas do Bósforo.
A tradução é bastante livre, ao ponto que me permiti certas piscadelas referenciais coa tradição galega e portuguesa, que alguns amigos identificarão sem dificuldade. Isto com o propósito de permitir um jogo intertextual que radique o poema, assumindo de algum jeito uma recriação.
Direi-lhe ao passeante:
para a verdade há uma noite escura,
darei-lhe uma galáxia.
(Sohrab Sepehrí)
INTERROGATIVA, ENUNCIATIVA, CONJUNTIVA E DE RELATIVO.
O sol dormido no ventre da criança
avança pálpebra a pálpebra lisonjeiro.
Sabes, filho, a ledice dos astros
as faíscas perdidas
do gato da lua
do grilo insone da lua?
Sabes, meu filho, o que se demora o amor nas tardes
em que um mendigo exculpa a palavra aziaga?
Como uma sombra
em que caminho sem temor e rumo
vacilante e agudo e, quiçá,
subtil.
A corda do amor e da tarde do amor
pelas estradas como
cão vadio de desertos e vozes
(-Animal de luzes e silêncios vivos
pirilampo dos astros
rei oculto das navegações
– levanta-te e anda!)
Mas ela está aí!, eu a sinto
Bela mendiga de olhos de amêndoa
Página do amor enfebrecida
Que canta
Que baila
Que vibra
Que se extende de mão a mão
Que é lágrima de vento e árvore
Contida!
E ouço o grito estilhaçado da estrela
mais antiga
caminhando na rua de carvões
de vinho
de solilóquos e buzinas
de chumbo e ouro
e o canto dos pássaros cegos
e a voz dos que nobremente sofrem
e os supiros
e os homens
e os não homens
e o cão
e o gato
da lua pálida e antiga
neste dia em que esqueci meu nome
Caminho cego
Mas intuo esta galáxia viva
A formarem-se no peito
(A mendiga descalça de olhos de amêndoa …)
E não me iludo, pois hoje,meu amigo,
as minhas mãos têm a idade do universo
e tenho frio
e froto as mãos contra as mãos
eu
o mendigo prehistórico
e futuro.
As mãos
a cabeça entre as mãos
e o mar amarelo e febril
para ti e para mim
para ti e para mim
Amor
Velha melodia do pássaro cego
que voa no mar amarelo
Que se perde no labirinto da mais
velha avó
cozinhando a vida futura!
Ai!, a vida futura!
(Que fartura!)
E caminho de ritmo vadio
A falar com o grilo que caiu da lua
– Senhor tal e qual, como lhe vai?
– Bem, mal, regular.
(Segundo calhar)
Sim , para a verdade há uma noite escura
Uma noite de luminoso negro
De luto puro
Singelo
Para ti
Para mim
Para o orfebre namorado da cigana
Que sei eu?
Para o que mentiu cem vezes
Para o que caiu
Para o humilhado
Para o ofendido
Para o que humilharam
Para o que ofenderam
Para o que matou
Para o que foi matado
Para o que morreu
Para o que foi morrido
Ai!,
meu Deus
meu Deus!
Que sei eu?
E o sol acorda no ventre da criança
E sorri.
J. A. L.
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