No fluir do som, quando desdobrado livre de constrangimentos, emerge a diferença. É por isso que, nas músicas improvisadas, reside ainda a esperança de um jogo; um jogo, por sinal, para além disso que é humano demasiado humano, aquém das paisagens e depaisagens daquilo que nos envolta e configura.
Enfiarmos a nossa amiúde tão pobre subjetividade na agulha desse “tempo selvagem”, que parecesse transcender o empírico para chegar a um puro pensar desterritorializante, a um anónimo gozar, nos deixa diante de uma suprema contradição. Por um lado, estamos a jogar com um plano impessoal, que não conhece nem quer saber nossos nomes; por outro, na sua nudez, acho difícil acreditar que haja músicas mais honestas (que não, mais uma vez, “humanas”). Para além do cogito e os seus tempos abstratos, Aion emerge na superfície profundíssima do instante para criar passados e futuros.
Instantes (verdadeiros instantes) há muitos, infinitos, na música de Sei Miguel. O carro de fogo (Clean Feed, 2019), o último álbum do extraordinário trompetista, foi descrito por Gonçalo Falcão com grande inteligência ao descrevê-lo como um “blues mortonfeldmaniano em que cada nota conta tanto como o espaço entre elas. Um blues transparente” (Falcão, 2019). E precisamente nesta transparência reside a sua destreza; mas nem só: é nesta transparência onde reside a profundidade de Sei Miguel.
Além dele, por certo, esta configuração do “carro de fogo”, que gravou a peça em Lisboa em abril de 2018, assumiu a forma de um octeto (fazendo parte todos eles do núcleo alargado de colaboradores do trompetista): Fala Mariam (trombone alto), Nuno Torres (saxofone alto), André Gonçalves (órgão), Bruno Silva (guitarra elétrica), Pedro Lourenço (baixo elétrico), Luís Desirat (bateria) e Raphael Soares (percussão).
As poéticas do instante como refúgio de uma vida infinita, imarcescível, são frequentes na filosofia. Muito ricas no contexto pós-bergsoniano dos Bachelard, Wahl ou Jankélévitch, será este último quem em 1939, em “De l’ipséité”, rejeite o “intelectualismo” do mergulhador que, na sua arrogância (ou na sua ignorância), acredita poder penetrar nas profundezas do ser com paciência e os instrumentos adequados.
“Os verdadeiros mistérios”, diz, “não são aqueles nos quais nos afundamos cada vez mais por um aprofundamento dialético, mas aqueles que se mantêm inteiramente na sua pura eficácia”. Contra isso, “o intelectualismo defende a ideia de uma profundidade na complicação e nas mil coisas essenciais ou secretas que o nosso órgão supersensível decifraria cavando além das aparências; o ato de compreender torna-se assim o mergulho através do qual penetramos, como mergulhadores, nas profundezas do ser”.
A este “mistério alegórico”, Jankélévitch irá opor a ideia de um “mistério tautegórico”, que não seria misterioso por ser sinal de outra coisa, senão pela sua própria presença, “pelo simples fato de existir”. Com isto, Jankélévitch vinha utilizar novamente fórmulas schellingianas (a tão importante noção de “Tautegorie” da Philosophie der Mythologie), falando de uma “profundíssima escuridão” que descreve por sua vez como “profunda precisamente porque é superficial, escura por força da clareza [limpidité]”.
A linguagem das trevas, tão frequentemente utilizada para falar das músicas improvisadas e doutras músicas de difícil “apreensão” (captura), torna porém difícil sairmos dessa noção de “insondável superfície” (Jankélévitch, 1939: 21). Abaixo dos “mistérios”, que são sempre ilusões de ótica ou efeitos de linguagem, permanece a exuberância do real e os corpos que o habitam. As próprias músicas improvisadas, na sua fuga dos clichés, ou seja, na sua busca de formas novas, foge de mistérios tanto quanto de dialéticas, pois a sua busca é realmente uma busca, não um percorrido circular onde tudo era conhecido de antemão.
As músicas improvisadas, como a de Sei Miguel, permitem-nos enfim desfrutar de instantes a-significantes, ligados à paisagem, na paisagem, que são paisagem e ao mesmo tempo desfazem estas paisagens para criar outras novas. Criar por força de restar, somar por força de calar, dançar por força de escolher sempre a menor intervenção. Acertou plenamente Vítor Rua quando disse: “Se tivesse de resumir numa palavra a obra musical do Sei Miguel escolheria o termo ‘rigor’” (Rua, 2016). Deixar ser, despir, desvelar. O rigor da mínima intervenção.
Longe das cansativas lógicas de metáforas e sinédoques de toda essa música de programa que ainda hoje sobrevive sob o nome de “improvisação”, a de Sei Miguel é uma lógica das superfícies por quanto formula uma sintaxe de objetos e silêncios, de timbres e espaço aberto, no que às coisas se lhes deixa ser, e na que a nós se nos estimular a escutar, e a escutar melhor.
O sereno cintilar da rua de manhã, hoje, aqui… Agora. Percebemos o tímido, subtil, sorriso das coisas, que simplesmente são. Os dados foram lançados, e foi isto que aconteceu. Tudo isso? Seja. Houve uma escolha, há um presente, e para além de ideias há timbres. Sei Miguel apanha o seu trompete de bolso, apanha o momento justo, compõe com o tempo, compõe o tempo todo. Dá num alvo por ele criado. Acerta.
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Matías G. Rodríguez-Mouriño (Compostela, 1989) é historiador da arte, doutorado em Filosofia e investigador pós-doutoral Margarita Salas (USC/UPF). As suas publicações e interesses movem-se no contexto dos Sound Studies e a Estética Contemporânea, nomeadamente no que diz respeito à questão da paisagem sonora, a arte sonora e a cidade. É especialista na obra de Félix Guattari, sobre cuja estética escreveu a sua tese de doutoramento. Tendo participado em seminários e congressos na Galiza, Portugal, França, Brasil, República Checa ou Reino Unido, organizou e dirigiu diversos encontros científicos. Prémio CGAC de Investigação e Ensaio sobre Arte Contemporânea 2021.
Referências
—Falcão, G. (22 de julho de 2019). O Carro de Fogo de Sei Miguel: Cenário e personagem. Jazz.pt. https://jazz.pt/ponto-escuta/2019/07/22/cenario-e-personagem/
—Jankélévitch, V. (1939). De l’ipséité. Revue Internationale de Philosophie, 2(5), 21-42.
—Rua, V. (12 de agosto de 2016). As nuvens sónicas de Sei Miguel. Jazz.pt. https://jazz.pt/cronicas/2016/08/12/nuvens-sonicas-de-sei-miguel/
1 A tradução é nossa. No original, lemos: “Les véritables mystères ne sont pas ceux où l’on s’enfonce de plus en plus par un approfondissement dialectique, mais ceux qui tiennent tout entiers dans leur effectivité pure. L’intellectualisme plaide l’idée d’une profondeur en complication, et profonde de mille choses essentielles ou secrètes que notre organe suprasensible déchiffrerait en creusant au delà des apparences; l’acte de comprendre devient ainsi la plongée par laquelle nous pénétrons, comme des scaphandriers, dans les épaisseurs de l’être. A ce mystère allégorique j’oppose le mystère ‘tautégorique’, celui qui est mystérieux non point parce qu’il serait le signe d’autre chose, mais par sa présence même et par le seul fait qu’il existe.”(Jankélévitch, 1939: 21).
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