Jaime Rocha é um homem discreto. Sente-se uma cálida serenidade quando nos aproximámos dele, ao mesmo tempo inquieta, própria de quem trabalha os difíceis materiais da palavra. A sua voz é das mais vigorosas da literatura portuguesa contemporânea. Singular na plasticidade e no rigor lírico, para ele não há poema que não se abra como uma ferida, esse poema talhado à medida do desastre, farejando a cidade e o mar, a vida e a morte, e que nos faz quem sabe experimentar uma possibilidade inédita de existirmos.
Jaime Rocha nasceu em 1949, na Nazaré, Portugal. Frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa. Viveu em França nos últimos anos da ditadura. Publicou o seu primeiro livro, “Melânquico” (poesia), em 1970. Tem editadas várias obras no domínio da poesia, da ficção e do teatro, na editora Relógio d’Água, Lisboa. Na poesia destaca-se “Os Que Vão Morrer”, 2000, “Zona de Caça”, 2002, “Do Extermínio”, 2003, “Lacrimatória”, 2005, “Necrophilia”, 2010, “Lâmina”, 2014 e “Preparação para a Noite”, 2017. Na prosa, os romances “A Loucura Branca”, 1990, “Os Dias de Um Excursionista”, 1996, “Anotação do Mal”, 2007, “A Rapariga Sem Carne”, 2012 e “Escola de Náufragos”, 2016. No teatro, destaca-se “O Construtor” e “O Terceiro Andar”, 1998, “Seis Mulheres Sob Escuta”, 1999, “Casa de Pássaros” e “O Jogo da Salamandra”, 2001, “Homem Branco-Homem Negro”, 2005, “O Mal de Ortov”, 2009 e “O Regresso de Ortov”, 2013.
Vencedor de prémios tais como: Grande Prémio APE de Teatro, 1998, com a peça “O Terceiro Andar”; Prémio Eixo Atlântico de Textos Dramáticos, 1999, com a peça “Seis Mulheres Sob Escuta”; Grande Prémio de Teatro SPA/Novo Grupo, 2004, com a peça “Homem Branco Homem Negro”; a peça “O Construtor” foi seleccionada para o Prémio Europeu de Teatro, 1994, Berlim; Prémio de Ficção do Pen Clube, 2008 e Prémio Ciranda, 2008, com o romance “Anotação do Mal”; Prémio de Poesia do Pen Clube, 2011, com o livro de poemas “Necrophilia”.
“A cidade seduz-me tanto como me perturba e ameaça. É um real muito forte, perigoso, sujo, violento, onde se vive na iminência da morte, dentro de um perigo constante, sem saída, angustiante, que sufoca”
Numa conversa que tive oportunidade de partilhar com o Jaime na última edição do Raias Poéticas, confessava-me que se lhe apontassem uma arma à cabeça pedindo que se declarasse, poeta, dramaturgo ou romancista, responderia sem hesitar: poeta. É mesmo assim? Terá sempre esse olhar de poeta perante o mundo que lentamente desaba?
O olhar do poeta é o primeiro e o último possível, após a tragédia, após a morte e a danificação do mundo, o morticínio humano, o genocídio e a agonia dos povos, restam poucas palavras no universo para serem escritas, lidas, ditas. Essas são as palavras deixadas ao poeta, porque ele sabe ler a vida que sobra de um modo único, singular, sabe descobrir o texto que ilustra a selvajaria humana, ou seja, o que a alma esconde, envergonhada.
E sabe à partida que o que escreve irá ser poesia? Como parte para o texto?
Sei, apenas porque a poesia se insinua, contrariamente à prosa e ao teatro cujos processos de escrita podem ser pensados, reflectidos, manipulados. O texto poético parte de si mesmo, não sou eu que parto para ele, eu apenas lhe sigo a primeira pista, o caminho que me é indicado e que não sei de onde vem, que não entendo, nem procuro explicar. O poema é um ser vivo que se mexe por si mesmo, que desoculta, que descola qualquer coisa que está presa ao pensamento mais profundo e se quer soltar.
Afirma que o seu livro “Preparação para a Noite” é um registo poético mais seu, um regresso a um ambiente mais urbano. A cidade possui essa cadência fulgurante e sedutora do real?
O meu livro “Preparação para a Noite“, publicado em 2017, na editora Relógio D’Água, de Lisboa, é um regresso à cidade, após uma tetralogia poética muito particular que atravessou uma década dedicada e inspirada praticamente ao mundo dos pré-rafaelitas ingleses, poetas e pintores do séc. XIX (Dante Gabriel Rossetti, Swinburn, Burne-Jones, William Morris, Millais, Elizabeth Siddal, entre outros). A “Preparação para a Noite” foi o retomar de um registo poético iniciado pelo meu livro “Do Extermínio”, publicado pela primeira vez em 1995. A cidade seduz-me tanto como me perturba e ameaça. É um real muito forte, perigoso, sujo, violento, onde se vive na iminência da morte, dentro de um perigo constante, sem saída, angustiante, que sufoca. Assim eu a vejo, no meio de alguma festa e de uma imensa liberdade, bem como de uma fulgurante beleza. Neste caldeirão urbano, descubro também os textos que dão forma ao meu teatro e aos meus romances (para além do texto narrativo ligado à minha memória de infância de que é exemplo a “Escola de Náufragos“, de 2016), aquilo que sobra da poesia e que é muito.
O filósofo Byung-Chul Han descreveu que “vivemos actualmente numa dissincronia, numa dispersão frenética que faz com que cada instante pareça igual ao outro”. Identifica este fenómeno nessa sua cidade poética? O poeta deve saber interpretar o seu tempo?
Penso que essa dispersão frenética de que fala o filósofo é verdadeira, mas só aparentemente um instante é igual ao outro. Parece, mas apenas parece, não é e é isso que importa ao escritor, essa fenda, esse risco que divide os acontecimentos. Cabe-lhe a ele enquanto criador. Este fenómeno depende do olhar do poeta, ou seja, de um olhar de dentro para fora e não o seu contrário, porque um crime, uma zanga, um insulto, um abraço, um desastre é completamente diferente um do outro e um facto só à superfície é idêntico ao outro. Um grupo de mineiros soterrado numa mina, não é igual ao de um grupo de jovens presos numa gruta, embora pareça, para o cidadão comum, um mesmo tempo de observação e um mesmo conteúdo de perigo ou até na geografia do lugar idêntico. Dá a ideia de que o facto se repete. Ou num terramoto, num marmoto, numa onda gigante, numa guerra, pode haver a tendência de se desvalorizar porque já não é inédito. Assim como, duas mortes, vinte, duzentas, duas mil, pode significar o mesmo para quem recebe a notícia. O papel do poeta, do escritor é interpretar o acontecimento e inscrevê-lo no seu tempo.
“O sangue move-se, o poema move-se
e a ferida não sara nunca”
“As palavras inscrevem-se no poema como o sangue que corre de uma ferida.” Aproveito esta frase sua para fazer uma pequena confissão: das vezes que o ouvimos recitar consegue-se perceber a emoção com que lê os seus textos. Acha que a voz recitativa, esse poema-sonoro, ligado ao recitativo ditirâmbico e teatral também, é percorrer essa ferida, é talvez a melhor forma de comunicar o poema a alguém?
Confesso que me perturba a leitura ao vivo da minha poesia para uma audiência. E percepciono a emoção crescente durante essa leitura, como se essa ferida se fosse reabrindo ao mesmo tempo que ouço a voz do poema. Penso que o poema possui uma memória enquanto objecto vivo e essa memória vem agora, na leitura, de fora para dentro, reabrir definitivamente essa ferida. Esse confronto das palavras com o autor é um desafio já que ele não é totalmente dono do texto que criou e o momento da leitura (quase sempre meses e meses após a sua escrita) aponta para uma nova versão e compreensão do poema. O sangue move-se, o poema move-se e a ferida não sara nunca.
Acredita nesses afectos, nesse “inscrever no vivo um principio de bondade” que Maria Gabriela Llansol tão bem falava, esse dar razão ao poeta?
Acredito nesses afectos, mas a verdade do poeta nem sempre é a verdade do vivo e essa bondade de que a Llansol fala e que tem a ver com o seu olhar muito singular sobre a natureza, sobre o ser-vivo, é muitas vezes inscrita no poema como sendo o seu oposto, a (não) bondade do poeta, já que o autor elabora uma poética que está para além do que vê, sente ou ouve. Para mim, o poeta tem quase sempre razão, porque tem o poder de desocultar a palavra que está já inscrita na natureza. A bondade nasce dessa desocultação.
“Gosto dessa linguagem cortante do quotidiano que os jovens poetas imprimem aos seus textos”
Há algum livro seu no qual goste de revisitar-se? E algum livro que esteja a escrever no momento?
Sim, tenho particular apreço pelo meu livro de poemas “Do Extermínio” (1995) que é um livro que considero ser o momento da descoberta da minha palavra inicial, ou seja, de uma voz própria enquanto poeta (a minha primeira recolha de poemas data de 1970), um livro fundador a que chamei o Livro da Anunciação. Depois a minha “Zona de Caça” (2002), o Livro da Perseguição que termina com a “Necrophilia” (2010) e que fecha a Tetralogia da Assombração. No caso da prosa, volto muitas vezes à “A Loucura Branca” e no teatro, ao “O Construtor”. Neste momento, escrevo um novo livro de poemas, preparo um volume de prosa e um outro de teatro, este que reunirá as peças em que entra o meu personagem Ortov (personagem que vive angustiado na procura de uma linguagem e de uma saída para a sua existência) de que já foram publicadas algumas peças.
Sei que está muito próximo das novas gerações de poetas e até mesmo que as procura. Essa convivência é vital para si, para a sua escrita?
Não diria que é vital porque escreverei mesmo sem essa convivência. Mas gosto desse confronto, de não gostar e de dizer, de ouvir e gostar, de discutir sobre a poesia e o seu futuro e de debater essa angústia que é o conflito de gerações. Mas sobretudo, gosto dessa linguagem cortante do quotidiano que os jovens poetas imprimem aos seus textos, muitíssimo diferente da minha. Há jovens poetas, excelentes, que admiro e eles sabem e isso é um conforto muito grande para mim. Existe uma partilha muito boa.
Para quem desconhece o Jaime é companheiro de uma das maiores romancistas em língua portuguesa, Hélia Correia. Como é partilhar essa vida-escrita? Habitam as obras de cada um para alimentar os seus próprios textos?
Nós habitamos cada um na sua própria obra, com universos diferentes e linguagens diferentes. A Hélia Correia é mais romancista e eu mais poeta e dramaturgo. A nossa partilha é de leitura exigente um do outro, antes da publicação. Vamo-nos lendo à medida que a escrita avança, vamo-nos incentivando, mas somos implacáveis quanto à qualidade do texto. O que se passa é que nos admiramos um ao outro, no que somos e no que escrevemos. Não esquecer que escrevemos e nos conhecemos, se quiser, namoramos, há cinquenta anos.
Em 2017, como motivo da nomeação de Hélia Correia como “Escritora Galega Universal” pela AELGA (Associação de Escritores em língua Galega) o Jaime visitou a Galiza. Como foi essa experiência? Chegou a confessar-me que se surpreendeu com a calorosa recepção na cerimónia de entrega do prémio em Santiago de Compostela. Sentiu essa fraternidade por parte dos Galegos, essa irmandade?
Nós gostamos os dois muito da Galiza e temos amigos lá, poetas, actores, músicos. A Hélia está traduzida e já participou em alguns encontros literários. É uma paixão nossa, pela língua, pela literatura, pelos lugares da Galiza. E o facto de a Hélia ser reconhecida (o Prémio e a calorosa recepção em Santiago é disso uma prova) e gostada nesse país com o qual ela faz uma forte ligação cultural ao seu mundo celta, ajuda a cimentar essa fraternidade, essa alegria.
fotografias por José Lorvão
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