KNK, de Luís Filipe Sarmento: uma peregrinação ao interior da existência humana, lugar onde se reclama uma nova e urgente metamorfose da literatura.
Ao reler o belíssimo conjunto de ensaios de Jorge de Sena, intitulado, O Dogma da Trindade Poética (Rimbaud) e outros ensaios, reencontro-me com uma revisitação ao surrealismo e ao seu importantíssimo contributo para «a libertação da linguagem estética» (p. 198). Ora, este livro de Sena foi concluído em 1960, ou seja, há quase sessenta anos. Por outro lado, todos sabemos que o primeiro «Manifesto do Surrealismo» data de 1924, ou seja, há 95 anos, num tempo em que Breton escrevia, por exemplo, isto:
«A simples palavra liberdade é tudo o que me exalta ainda. Julgava-a apta para alimentar indefinidamente o velho fanatismo humano. Ela responde sem dúvida à minha última aspiração legítima. Entre tantas desgraças que herdámos, temos de nos reconhecer que nos deixaram a maior liberdade de espírito. Cabe-nos não fazer mau uso dela gravemente. (P. 16).
Mas, já no actual século, no ano de 2006, era publicada a primeira edição de Heterodoxia II-escrita e morte, de Eduardo Lourenço, onde lemos que este é um tempo «(…) ainda bem longe de estar liberto das ruínas e dos terrores por onde Camus nos passeou (…)» (p. 83).
Eis o chão onde abrimos KNK, de Luís Filipe Sarmento, depois de passarmos por uma capa, que apresenta a carga simbólica de duas cores, que são princípio e fim, tudo e nada, caos e ordem, força e fragilidade, realidade e desconhecido, consciente e inconsciente, luz e sombra, vida e morte, o mesmo e o outro, sobre a qual estão inscritas três letras, inaugurando a síntese reconciliadora da trindade.
Em primeiro lugar, este livro cumpre a função matriz da poesia: o seu universo simbólico ou a sua ambivalência, trazida pela escrita que ora se mostra ora se oculta: Natália Correia escreveu que «as rosas ao contrário é que dão flor». Logo no primeiro verso e no início do segundo, somos convidados a integrar a mesma iniciação do sujeito poético: «Da metafórica mãe à obra magna: pensa a matéria obscura». Ora, a simbólica, neste livro, é, antes de mais, trazida pela criação do outro /o alter, tema aliás bastante borgiano. Ao criar 3 outros- Kant, Nietzsche, Kafka- o poeta desdobra o eu pelo «mesmo» -oculto- e pelo «outro» – a outra metade de si, revelada no texto poético, através de uma escrita na terceira pessoa, que, por si só, acentua esse oculto, criando o distanciamento pretendido, diferindo assim de JLBorges, que criava outros escritos na primeira pessoa. É nesta criação da simbólica do espelho que também o poeta revisita Borges e, naturalmente, Kafka.
Há, como não podia deixar de ser, um chão comum a estes três «outros», feito de angústia, de uma tremenda impotência, de muito medo, perante o absurdo da existência. Há, nesse chão comum, uma estilística que serva a simbólica da morte, vocábulo escrito 21 uma vezes neste livro, comparativamente a vida, que surge 10 vezes, ou seja, menos de metade. Ora o que aqui se denuncia é exactamente a existência comum, feita de uma sobrevivência, onde impera a obediência e a culpa, o medo do castigo, a burocracia, a mecanização a auto-amputação da vida vivida em pleno sob o signo da libertação e da liberdade, consentindo –se a colonização do carácter, que viabiliza a metamorfose da essência.
O poeta entrega-nos assim um livro , que é uma tríade ou uma trindade poética (Jorge de Sena), opondo a filosofia de Kant à de Nietzsche, ou seja, opondo a ética, a razão e a unidade (a todo o custo) à estética, ao instinto e à heterodoxia , para fazer a síntese com Kafka: lugar onde razão e emoção, ética e estética, unidade e heterodoxia se fundem para mostrar que o monstro não é apenas o sujeito poético metamorfoseado, mas uma humanidade inteira que vive no mesmo «labirinto sem porta» 8JLB), uma humanidade inteira servil, obediente, oprimida, lugar da culpa e do castigo, do isolamento, do pavor; uma humanidade despersonalizada, auto-amputada, colonizada, morta – tudo isto ou o absurdo da vida. Longe das torres de marfim, estamos perante o poeta profundamente comprometido com a humanidade. «(…) no labiríntico processo/da construção literária de uma lenda, um duplo/arrisca a seiva, protegendo-o da derrama da sua sombra. / K. faz metamorfoses com pesadelos e ri-se/de quem nunca ri. Ao legendário insecto dá-lhe um horário/de trabalho para que a mentira das paredes/se escreva nas entrelinhas de corredores sem justiça. /Enquanto abre portas infindáveis, os seus pensamentos/são labirintos como salas nuas e obscuras. /Á deriva na espuma dos projectos deixa-se ir/ porque tudo lhe falta.»
Depois de mostrar essa metamorfose da humanidade cega, propõe-se uma outra metamorfose – «metamorfose da literatura que o liberta /das grades ferrugentas do ódio (…)»
“KNK cumpre a função alquímica da poesia: enquanto espaço agregador, movido pela força motriz do amor”
KNK recupera a poesia – logos da libertação humana, amputada ao ser humano, cristalizada num universo estilístico riquíssimo e amplamente inovador , que serve a explanação da existência simbólica: um livro marcado pela mesma competência poética que complementa o formidável manifesto poético do poeta – Gabinete de Curiosidades – , onde também se lê (…)o medo como território dos vencidos, o medo de uma longa/ vida em cativeiro; o medo de ver morrer ao longe/o país do seu nome, a residência do seu afecto, a casa/da sua história. O estranho medo do estrangeiro sem face. (…) (p.24).
Chegamos assim ao epílogo poético, que lemos em KNK, uma peregrinação ao universo interior da existência humana, iniciação ou dialéctica poética que irá explanar a frente e o verso da viagem ainda incompleta da psique «(…)Sendo estrangeiro sem refúgio, ninguém sabe de onde vem,(…) (poema 2, Nietzsche) No distanciamento , que lhe proporciona a criação de 3 personagens, acentuado pela escrita na terceira pessoa, o sujeito poético apresenta a tríade da condição humana, recorrendo ao império da racionalidade em Kant, ou a razão pura do transcendental , onde o dogma e a moral impõem a obediência cega ou o servilismo , que se acomoda na fé- lugar da ascensão do indivíduo, a emoção de Nietzsche que, fora de Deus, chora a queda humana ,ancorando-se num impossível retorno sem fim( «O vazio impede o eterno retorno»(poema 4, Nietzsche), e Kafka ou o lugar da denúncia da Servidão Humana, da História da infâmia, deste mundo nosso de Miseráveis serventes cumpridores – somos a galinha que põe diariamente o ovo – conforme escreveu Sepúlveda – ou os serventes do império da deriva neo-liberal , império do terror que é a amputação da nossa individualidade, da nossa criatividade, da autonomia individual; império do terror com e sem armas, com ruído e em silêncio; império do terror que alimenta a fome e a violência contra a diferença. Império do terror das ortodoxias: («A priori o tempo e nele a casa habitada de interrogações, /da seara ao pão, da paisagem ao destino da fome, /o fogo da besta, a perversão da propriedade do espaço/e da fronteira. Instrumentos de matar/solidificam a aridez das memórias, o deserto da ignorância.») (poema 8), império da crucificação humana, esta idade do Filho, que nos foi e nos é imposta, e que veste os crimes hediondos cometidos pelas igrejas e pelos “templos» que «debatem» «escadarias/e calafrios para que o inexistente patrono/fosse alimentado com as fezes do desgosto;/teses moribundas, orações embarcadiças, /cânticos relampagueantes sem destino/aparente, escorrem pelas paredes verdes/de mofo e podridão sem rota nem paraíso. (…)»
E é então que o sujeito poético se apresenta como «o pássaro inquietante», «perturbante» (poema 9), que renuncia ao absurdo- «absurdo é a sua condição» – tornando-se mensageiro duma outra metamorfose: a «metamorfose da literatura que o liberta/das grades ferrugentas do ódio.» (poema 7, de Kafka). E para dar corpo a essa outra metamorfose, o sujeito poético faz passar, pela tríade simbólica –Kant, Nietzsche, Kafka- um outro tempo, necessariamente anterior, uma alteridade capaz de inaugurar a libertação humana: «oculto lugar onde o espaço/permanece no tempo e o tempo dá lugar a um novo espaço. / Nesta condição, elimina-se o traço/ que, sendo o mesmo, se renova/antes de ser futuro e sendo-o/convoca um novo espaço/ à expansão de um corpo que chora, /sorrindo-nos no tempo sem hora. » (poema 18). E apenas o poeta pode, de facto, nesse intervalo entre a luz e a sombra, de que nos Eduardo Lourenço, criar esse outro tempo, lugar da libertação, que viabiliza a vivência plena da liberdade. Por isso, afirma o sujeito poético: «(…) quando te vejo o tempo deixa de existir;/se o tempo te submete, /nada é o tempo quando me abstraio /nos acidentes do teu corpo neste espaço» (poema 20, Kant).
KNK é ainda uma poesia que reflecte sobre si mesma, tornando-se também uma verdadeira arte poética: ao anunciar a libertação da poesia, ao presentear-nos com uma escrita que se recusa a rescrever; ao apresentar-nos assim a poesia como o acto puro, inaugural, aquele que é verdadeiramente seminal, este livro apresenta-nos uma profunda e muito importante arte poética.
KNK cumpre a função alquímica da poesia: enquanto espaço agregador, movido pela força motriz do amor, que também enlaça estes poemas, o corpus poético pode fundir os dilemas e, ao fundi-los, cria esse intervalo entre a luz e a sombra ,que permite Ver um Tempo libertador, necessariamente anterior.
Por isso, diz-nos o sujeito poético, em poema 24:
«(…)
Se o entendimento não pode intuir
e os sentidos não conseguem pensar
só há conhecimento de si quando pela força individual
se reúnem para além do matrimónio visual
ou do património em transmutação pela obra do tempo. (…)»
Este livro faz-nos sentir muito menos sós. Depois de várias vezes o ter lido, dei comigo comovida, pelo imenso abraço solidário que este KNK é a cada uma e cada um de nós, e pela competência literária, lugar do imenso respeito por Ela. A Poesia, naturalmente.
Ângela de Almeida
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Ângela de Almeida é uma investigadora, ensaísta e poeta portuguesa, natural da cidade da Horta, onde viveu até aos 16 anos de idade. Estudou em Lisboa, sendo doutorada em Literatura Portuguesa e, nesse contexto, colabora com organismos regionais e nacionais, participando também em colóquios e congressos, promovidos por instituições portuguesas e europeias. Anteriormente, lecionou no Ensino Secundário e no Ensino Superior, foi editora e assessora para a Cultura. No domínio do ensaio, é autora de Retrato de Natália Correia (1993, Círculo de Leitores), vários estudos introdutórios a obras da mesma autora, A simbólica da ilha e do Pentecostalismo em Natália Correia (2019, Letras Lavadas) e Natália Correia, um compromisso com a humanidade (2019, em publicação). Tem, no prelo, o ensaio, Censura e estilo na Literatura Portuguesa do século XX, resultante da conferência, que apresentou na Universidade Sorbonne-Collège de France. No domínio da poesia, publicou: sobre o rosto (1989), manifesto (2005), a oriente (2007), caligrafia dos pássaros (2018). Publicou também a narrativa poética, o baile das luas (1993) e dois livros de viagem.
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