A poesia não é amparo contra a desolação. Como poeta estou sempre cheio e sempre vazio e, quanto maior é o confronto com o poema, mais o vazio se expande e é maior a desolação. Levo muito mais anos de escrita do que a que se condensa na larga Antologia que hoje se apresenta. Olho para trás e sei que sempre escrevi sobre o vazio, não apenas para o ultrapassar, mas para subentender alguma comoção no que vejo à minha volta. Paradoxalmente, não há balanços que possam confirmar cada uma das batalhas da guerra interior que de mim para mim quis aceitar, ou das que empreendi mesmo sem qualquer aceitação da minha parte. Por um lado, subentendo no mundo uma certa possibilidade de quantificação de beleza que, irremediavelmente, nunca será quantificável, por mais optimismo ou pessimismo que possa cultivar. Por outro lado, sei que a predisposição para a escrita vale tanto como a vontade que um prisioneiro tem de vir a ser livre sem que, no entanto, nada o salve da pena, ou lha possa comutar. Escrever é pensar, mas o pensamento que radica em cada tarefa que prepara e realiza o poema é um arresto sem fim, um confisco, uma aprendizagem que nada mais ensina do que a fátua tentativa de prevalecer sobre a morte, sem da morte nunca prevalecer. No fundo, ignoro se sou poeta, se essa qualidade me deslumbra ou me cega irredutivelmente perante o que a poesia seja, ou à poesia alguma coisa deva como disciplina insana e insaciável, ganhando ou perdendo sempre nos seus excessivos tabuleiros. A cada novo livro, a cada novo poema, não resta senão uma correnteza de descomedido vazio, por muito que a obra se acumule e se expanda, por muito que o esforço e o empenho possam constituir um enlevo que me possa absolver das muitas culpas encontradas no caminho. Nunca há culpa, o mundo é a transgressão cooptada e o sinal que mantemos e sempre nos acompanha desde o nascimento. Nascemos para morrer e sobre esse absurdo nos erguemos e incapacitamos, no âmbito da poesia, dos poemas, dos livros e, obviamente, da vida. Um poema contém sempre uma pequena parte da biografia do que fomos e somos e expressa a falibilidade da nossa fraqueza, a frágil delicadeza com que os fios da teia se vão tecendo poderosamente em volta da nossa cabeça e do nosso coração. A consciência da escrita vai comigo há mais de cinquenta anos. Há mais de cinquenta anos ignorava como tinha caído sobre mim uma doença incurável, de solidão e de medo, uma doença que, por um arranhão de felicidade, me haveria de abater e matar. Milhares de cigarros, milhares de insónias, milhares de perdas conduzem a que êxtase, a que dolo? Quanta tristeza vale a alegria de um verso, de um limite transporto, de uma ilusão que se alimenta para o resplendor de um azul, de uma praia, de um vaso de avenca, de uma página que se preenche e queremos salvar do sempre omnipresente esquecimento que, inexorável, cada momento entrega? Passaram os anos e cada vez me encontro mais ciente de que a felicidade almejada é inexistente no que faço, como uma impossibilidade, não podendo mais do que conhecer as ciladas que o corpo arma e a amargura instila. Um poeta feliz só poderia ser um idiota, que ao acaso das coisas conseguisse tocar a substância do que se faz por pasmo e estupor. O máximo expoente do vazio é o esquecimento, e um poeta sabe por experiência que não pode escapar a essa hostilidade e a essa impotência, por mais obstinado que seja, por mais amor que invista, ou ceda, ou hipoteque aos outros, por maior que seja a quantidade de tempo em que se ocupou no combate. E a doença é sempre avassaladora e brutal, a assediar o coração e o espírito, a promover um cúmulo de derrotas que nunca cessam, nunca desarmam, nunca me põem de pé sobre mim mesmo. Aqui vai mais um livro dos muitos que organizei, um caudal de energia que reúne uns quantos relâmpagos por que me fascinei e sobre os quais tive que trabalhar após ter ouvido uns quantos trovões na minha alma, a predispor-me para a luz, as sombras, o negrume. Se sou poeta, e ignoro se de facto o sou, sê-lo-ei, talvez, pela primazia que sempre dei à perseverança em aceitar um repto que sempre soube que me transcendia como homem. Uma aceitação ingénua, quase involuntária, e sempre ignorante quanto ao que da arte adivinhei e nunca consegui vislumbrar com eficácia, a ponto de saber o verdadeiro nome por que responde quando a chamo. E tem nome, a arte? E podemos nós, mortais, chamá-la para que não sejamos os desvalidos que somos? Há demasiadas paisagens na minha memória para que tenha sobre tudo um poder redutor que me resolva como artista. Vivi em muitos lugares, assomei a demasiadas janelas, observei inúmeras estrelas, cometi diversos suicídios e vários assassinatos. Li os mestres e fiz deles a minha religião, por mais contraditórios que fossem entre si, ou eu perante eles. A experiência foi sempre levada a cabo por tentativa e erro – e medo, e objecção. E erro, e medo, e objecção são os rios porque me fui espraiando em cada um dos livros que escrevi, preenchendo e esvaziando o espaço vital em que me movo, jamais apaziguado, em busca de um sossego que não há, incompreendido de mim e dos outros, até à exaustão, ao desespero, à recriminação. Por isso o vazio se adensa, e se enche assim, precariamente, até que se viabilize uma nova oportunidade para de novo me fascinar, e mais uma vez bata com os ossos na página em branco para que possa ouvir e ver de um modo diferente o que já tantas vezes se dissipou em mim. A poesia é uma arte superior de comunicação, e não há o que possa conter mais mistério do que a poesia que em nós se oculta e desoculta, para nossa graça e para nossa desgraça. Soube-a escrever? Sem que pudesse nunca escapar ao sortilégio, ganhei a vida ou desperdicei-a nesta constância inconstante que nem sequer escolhi, mas se me impôs como jornada inadiável e extenuante passagem para um lugar que muito provavelmente não existe. Hoje, a minha vaidade deu-se ao arrojo de querer que viesse a lume esta Antologia em que selecciono um longo caudal do que publiquei nos últimos trinta e cinco anos de actividade literária, seja lá o que isso for para um aprendiz de feiticeiro que, pelos vistos, mais não sabe do que desaprender ou permanecer ignorante. Se algum leitor puder identificar-se num verso que seja do que ficou escrito, já rejubilarei por a coincidência ter resultado. Aqui fica o volume, com a tinta ainda fresca, a preencher um vazio que não me há-de amparar nos novos desafios que hei-de enfrentar no irremediável vício que é escrever. Apesar de tudo, de mim há-de mostrar alguma coisa, além do testemunho de estar agora a apresenta-lo, cheio de contentamento por me encontrar entre benevolentes amigos, como prova de vida e de trabalho feito.
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Nota da PC:“Ler o invisível” foi o texto que Amadeu Baptista escreveu para a apresentação do seu novo livro Caudal de Relâmpagos ~ Antologia Pessoal 1982-2017. A Palavra Comum teve a oportunidade de acudir ao evento no Porto e celebrar a nova obra de um dos maiores poetas do nosso tempo, assim como de conhecer as instalações da editora Edições Esgotadas na cidade. O evento decorreu com a pulcritude necessária para a inspiração do Amadeu ressaltar como merecia perante as salvas da família, dos amigos e da crítica. Hoje temos ainda a honra maior de fazer partícipe ao público desta revista do magnífico texto que o autor ofereceu aos presentes, gentileza que agradecemos ao Amadeu do fundo do nosso coração.
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