Os galegos somos um povo iletrado porque temos uma língua sem letras. Essa foi a preocupação na maturidade do professor Ricardo Carvalho Calero, de que hoje celebramos a obra. O erudito de Ferrol foi cientista, escritor e político preocupado com o porvir da língua galega, a que só via futuro se enquadrada no âmbito da lusofonia. Mas porquê se preocupar por uma língua que, segundo a romanística europeia do século XX, está viva desde há mais de mil anos e é divulgada por vários continentes ao largo de mais de 250 milhões de gargantas?
O galeguismo do século XX, empenhado com a dignificação da língua galega, acusou o povo de desprezá-la e desse modo mostrar uma sorte de patologia social que se traduzia na assunção do castelhano, língua alheia, em detrimento do galego. Mas o povo não abandonava uma língua quando deixava de falar em galego, porque o tal galego, se bem olhado, não semelhava ser língua: não era usado para falar com o médico, nem com o jurista, nem com o farmacêutico, nem era a língua ensinada pelo professor, nem a língua louvada como de literária. Era a língua que por costume, não por ciência, tinham os labregos, era a língua dos que abaixavam o lombo de sol a sol, a língua dos que pouca ou nenhuma terra tinham, a língua dos que na escola eram castigados recebendo com a régua nas mãos por não saberem falar castelhano. Era a língua, em definitivo, dos que não tinham língua.
O galego era, portanto, simplesmente um falar. Por isso, não compreender que o povo precisava de língua a sério é estar errado no essencial. E abandonar os falares galegos porque portam o estigma da miséria não é um ato de auto-ódio mas, tudo pelo contrário, é um ato de amor. Do mesmo modo que muitos pretos em épocas passadas terão desejado que seus filhos tivessem nascido brancos, muitos dos homens e mulheres da Galiza desejam ou permitem hoje que seus filhos não falem galego. É preciso abandonar o lastro da indignidade e abraçar uma hipótese certa de futuro. A tanto obriga o amor pelos filhos, a tanto obriga a vida quando por sobre todos os obstáculos precisa de abrir-se caminho.
No entanto, não alimentar os filhos com a língua em que o sangue fala tem um preço muito alto. Desdenhar os valores ancestrais, desarraigar-se até o ponto de desprezar a cultura que desde um passado excelso, embora desconhecido, nos conduziu ao presente, tem consequências na psicologia social. Como ser-se um povo que acredita no futuro se no passado só se reconhece vergonha e carência? Como atrair para nós a abundância e a criatividade sem sentirmos que pertencemos a uma estirpe universalmente digna que nunca deixou de convocar as forças cósmicas para tirar da Terra o frutos que nos são sagradamente destinados?
Esses falares galegos, por centenas de anos sem forma escrita e continuamente influídos pela língua imperial espanhola, chamados de língua galega assim que forçados na modernidade a uma norma culta híbrida academicamente construída e só ritualmente usada pelo Poder e os meios de comunicação, são qualquer cousa que o povo continua sem amar, até porque não podem se sentir ainda como uma língua, e muito menos como própria. Não é própria de quem a fala sem coração e só durante umas horas perante o microfone para ganhar um salário, e não é própria de quem mamou outra cousa do peito de sua mãe, qualquer cousa de autêntica embora não ter consideração de língua. Portanto esse falar elevado artificialmente a culto, por muito que como língua possa ser vendido na Academia, ninguém quer comprar, e assim a dita língua galega atual foi indo à míngua sem remédio.
Promovido por Ricardo Carvalho Calero, houve na décadas de 70 e 80 a consolidação do velho projeto de reintegrar a língua galega no sistema linguístico que lhe é próprio por direito, até porque a língua portuguesa nasceu historicamente da sua matriz. E não há maior direito no universo do que aquele que provém da mãe. Mas seguindo esta alegoria do familiar, se calhar cabe pensar que os galegos, se bem temos por mãe cultural aqueles falares galegos que nos fornecem do aspeto telúrico essencial, temos hoje dous pais no que diz respeito das línguas que servem para conquistar e amar o mundo: o castelhano e o português. Da relação da Terra com o castelhano surge o vínculo com a hispanofonia e da relação com o português, surge a lusofonia. Nenhuma das duas opções tem, a meu ver, consequências fáceis de harmonizar, é certo, mas esta diversidade de caminhos tem de ser assumida como riqueza antes do que como irresolúvel contradição. O nosso futuro como sociedade está em causa, e devemos dar passos para a frente em lugar lamentar permanentemente um passado obscuro. Até porque do mais obscuro na noite é que nasce um novo amanhecer.
Nesta linha, nos últimos tempos há propostas que tentam salvar as estratégias que se têm revelado como infrutuosas, e novas atitudes que visam a convergência das energias mais positivas são capazes de se sentarem ao lado para trabalhar. Assim, celebramos que enfim a figura de Ricardo Carvalho Calero, por dezenas de anos afastado do reconhecimento universal que sua vida e obra merecem, suba à palestra dos maiores homenageados das Letras Galegas. Fizeram falta muitos anos e muitos esforços para que este reconhecimento tivesse lugar (lembremos a defesa permanente da sua homenagem oficial pela Associação de Escritoras e Escritores em Língua Galega), e agora é que vai ser preciso alargar, necessariamente, o conceito de Letras Galegas: não poderão ser unicamente as letras castelhanas aquelas em que se pode grafar o galego, mas também aquelas com as que o galego vestiu as sua primeira literatura na Idade Média e que hoje ostenta com universal privilégio a língua portuguesa. Por isso celebro hoje, no meio duma crise sanitária mundial as decisões a que uma crise cultural, centenária mas enfim enfrentada na Galiza, deu lugar: o desvendamento da figura do velho professor que, como outros também desdenhados pelo poder pela mesma causa, ansiava recuperar toda a dignidade a que a língua galega tem direito, para uso dos galegos e do mundo inteiro (cf. Carvalho Calero 2020).
Para finalizar este texto tantas vezes imaginado e só agora escrito, quero parabenizar a Associação Galega da Língua, a Real Academia Galega e a Junta da Galiza, por terem sabido trazer para a cima da mesa muito do que como galegos nos une, na tentativa talvez inédita de pôr realmente de acordo, no sentido etimológico, as “tribos” da Galiza. É um caminho que sem dúvida custará seguir, mas que com certeza nos levará à união de forças, ao aproveitamento da imensa criatividade que nos desborda e a uma abundância de recursos que só poderá conduzir ao bem estar social.
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