Como se a manhã do tempo despertasse: Saberei porventura os lugares
de onde fala esta voz? Os enigmáticos espelhos de onde se olha?
Visão e sonho, por onde vem seu segredar? Por que se inquieta a
respiração? Quem acende o perdido caminho, quem peregrina em
aparente cegueira?
Dentro de si.
Da casa.
Contorna, desenha vagarosamente as mãos com que se escreve. Surpresa
como um caminho sem rumo.
Apenas no corpo um coração impresso
Um sabor ausente
me presencia.
Sinto-o.
Pareces uma paisagem com uma janela dentro, contas.
Uma personagem que se desdobra. Sem nome.
E os nomes reverberam acesos para uma evidência indemonstrável.
Nesse lugar.
Sim, nesse lugar de silêncio onde a varanda abre a sua boca sobre o infinito
pelo ar corre uma secreta ânsia
talvez de beber inteira
a lua em sussuro alto ou em redondo e branco grito
Venho da infância infinita, dizes, os chocolates na algibeira do coração,
embrulhados em cores celofane.
Meu País dentro.
Um navio navega-me longe. Costeiro. Procurando uma rua que me leve até ti.
Nada lhes digo. E para que serviria se para eles não podes ser visível?
Há nesse lugar do coração uma paisagem antiga
sempre presente
uma flor de frangipani ou de buganvília? branca rósea vermelha amarela lilás
que nunca morre
Há uma paisagem antiga nesse lugar do coração
um perfume que se solta intenso das folhas amarelecidas do álbum
aí o meu – o teu? rosto está sempre igual
e o olhar com que me olhas já tem consigo o constante brilho das estrelas
tremeluzindo intensas
no meu caminho pela noite do mundo
em torno da lâmpada o rodopio zunindo
volteando vértices de luz
uma roda de insectos dança
até ao amanhecer
Respiro como se o tempo nunca mais acabasse
respiro-te ana mafalda como se respiram as manhãs
ao deter-me devagar sobre a tua imagem
como quem junta sóis ao amanhecer
como se a manhã fosse de sempre
Como se a manhã do tempo despertasse
e eu adivinhasse o tempo ainda por chegar
Um tempo em que apenas me habita o infinito
alvor de estrelas
cair das luzes no rio
com muito silêncio
Um feitiço dentro desta escrita??
Dizes: Houve um tempo em que tive amor à poesia
olhava-te
abrindo as páginas os livros
protestando contra a insuficiência do mundo
choravas ou rias?
a música muito alto
tão alto uma labareda imensa era voz de voz propagada
Houve tempo que da poesia nasciam brasas
borboletas, coisas mágicas de circo
em rodopio
do chapéu as pombas as casas as pessoas que eu não vi nunca
mais
Como é possível escapar à eternidade?
entrando dentro de um espelho de intocada imortalidade
Será que o mundo começa sempre de novo?
perguntas acordada
Eu digo que sim e as cores raiam o violeta do pássaro do eco o verdelaranja da maçanica
o amarelo do hibisco um momento rubro
o sol na cabeça guardasol uma cegueira inquieta
O que fazes aí ana?
como se vestida da luz da tarde….
o espírito adverte não confundas não passes a fronteira
arde em ti um fogo, aquele muito lento
que caminha
e eu olho-te do outro lado do espelho
espectral o véu de pirilampos que te rebrilha
encantado dorme em ti o mais recôndito feitiço
despe-se da noite incendeia a imagem
para que voe
para que arda
para que deslize
para que cresça uma raiz cintilante
agora, aqui, vês?
na terra vermelha no sonho alto transparecendo as marcas uma a uma
desse gigante girassol e giralua por dentro da alma
incendiado beijo azul roxo da tarde correndo onde
ainda lento o horizonte cresce sem medida
te transporta até onde dança lentíssimo
ele, uma figurinha no palco,
o infinito
Vês? Estendo aqui a paisagem. Para que vás comigo até lá
fátuo incêndio astrolábio
breve passagem
É uma janela que se abre
em fogo queimada ao longe ardendo
noite cheia de estrelas iluminada noite acesa
obscuro mundo em festa
desmesurado o coração estremece e atravessa a paisagem
O coração pulsa sem medida . Sentes?
vês?
uma maravilhada estrela
ponto e porta
a infância o infinito
eu, tu, ela?
entramos por aí
uma fuga do rosto, um devir imperceptível
Ana Mafalda Leite, poeta e ensaísta, nasceu em Portugal, mas cresceu e estudou em Moçambique. É professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa A sua obra poética caracteriza-se por uma lírica muito pessoal que dramatiza vozes em poemas longos e tematiza relações entre escrita, pintura e música, salientando percursos autobiográficos e intertextuais de diálogo com a poesia e vivência moçambicana, e também com uma lírica amorosa de origens muito diversas, desde orientais a ocidentais, tecendo nessa rede citacional uma memória de afectos. Publicou mais de uma dezena de livros de poemas, de que se destacam títulos como Rosas da China, Passaporte do Coração, Livro das Encantações, O Amor essa Forma de Desconhecimento, Outras Fronteiras Fragmentos de Narrativas. Foi-lhe atribuído em 2015 o Prémio Femina Lusofonia de Literatura.
Nota: este texto foi lido na 7º edição do Raias Poéticas (Afluentes-Ibero-Afro-Americanos de Arte e Pensamento).
Foto da autora: Bruno Todeschini
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