Por acaso, no processo de compilação de documentação sobre as diversas opiniões sobre a língua literária da Galiza, chegou às minhas mãos um valiosíssimo artigo do professor e investigador Manuel Rodrigues Lapa, em que retoma argumentos antigos que foram revisados e que transcenderam ao território galego (1973) produzindo um animado debate transminhoto que logo, uma década mais tarde (1984) retomou num completo artigo para o Diário de Notícias, este que aqui reproduzimos. A profundidade e inteligência dos argumentos expostos, assim como a sua relevância para uma revisão atual da permanente decadência da cultura galega —apesar das promessas esquecidas dos poderes proeminentes e das viragens estratégicas do galeguismo supostamente mais consciente— durante quase cinquenta anos de democracia, é que nos impulsa a trazer para a cima da mesa estes temas tão magistralmente tratados por um galego de além-Minho que sempre se sentiu comprometido com a verdade e as autênticas raízes históricas do seu país.
A. F.
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«A reintegração linguística galego-portuguesa — um drama que nos afecta a todos nós»
Manuel Rodrigues Lapa
(Diário de Lisboa, nº 148, 23/2/1984. Cf. Casa Comum, da Fund. Mário Soares)
«Tem sido sempre motivo de confusão o das relações entre galego e português. Já porque o problema, de si mesmo é um tanto confuso e até excepcional, já porque se têm enxertado nele preconceitos de ordem política geradores de perturbação. Vejamos, em primeiro lugar, o que nos diz a História.
Do latim popular da velha Galécia desenvolveu-se um falar galego ou galaico-portugalense que deveria ser mais ou menos uniforme, abarcando um largo território do sul e sudoeste da Península, como se deixa ver do mapa de Menéndez Pidal sobre a Espanha dialectal, por volta do ano de 950. A descoberta das carjas moçárabes e outros documentos linguísticos vieram demonstrar que mais de metade do Sul da Península Hispânica usava um dialecto de raiz galega, que perdurou para além do século XII, quando o invasor castelhano do norte começou a impor a sua própria língua.
Esta antiguidade e fortíssima expansão do galego a que a própria Castela se não esquivou é ainda confirmada por um facto da maior importância: os jograis e trovadores do século XIII, oriundos de zonas linguísticas diversas, tiveram à sua disposição um velho dialecto moçárabe galiciano e uma poesia popular românica, que lhes teriam permitido o aprendizado da língua poética em que compuseram os seus versos. Há mais de 50 anos que venho defendendo esta tese, com base em trabalhos de Pidal e Juan Ribera. Fica, pois, superada a explicação proposta por Amado Alonso, segundo o qual foi a semelhança entre o galego e o castelhano, que teria facilitado o uso da língua lírica em galego aos trovadores estranhos à Galiza. O que os jograis e trovadores castelhanos de expressão galega tiveram foi o uso cómodo e caseiro de duas línguas: o galego e o castelhano. E aliás, o que nos dizem eloquentemente certos nomes dos Cancioneiros trovadorescos: Pedr’Amigo (de Sevilha); Joan Vásquez (de Talaveira); Afons’Eanes Cebolilha (de Sevilha); Joan Servando (de Toledo); Pero Garcia (de Burgos); D. Gomes Garcia (de Valhadolide); Joan Jogral (de Leão). O substrato galego moçárabe, geralmente falado, permitiria uma fácil opção entre os dois idiomas: o galego, mais suave, para a poesia lírica; o castelhano, mais rude, para a poesia épica.
«Os jograis e trovadores do século XIII, oriundos de zonas linguísticas diversas, tiveram à sua disposição um velho dialecto moçárabe galiciano e uma poesia popular românica, que lhes teriam permitido o aprendizado da língua poética em que compuseram os seus versos»
Temos pois o galego-português fortemente implantado em toda a Península, como língua incomparável do lirismo. E dizemos galego-português e não simplesmente galego, como até aqui porque os dois povos irmãos estão unidos numa empresa que lhes é comum e vai durar mais de um século: a consagração do amor da mulher e o festival da maledicência picaresca. Se, ao começo, o fiel da balança pendeu para o lado galego, como era natural, depois, mais para o fim, inclinou-se para o lado português. Deu-se a decadência a partir do século XIV, os elos que estreitavam as duas Galizas foram-se alargando, a influência castelhana foi endurecendo ao Norte do Minho, até que o galego atingido pelo cesarismo político, deixou de se escrever publicamente. Assim, o galego-português de além Minho, após o seu período de glória como língua de cultura, desceu novamente à condição de dialecto rural; e nessa mísera situação se conservou até meados do século XIX. Aqueles que iniciaram a chamada literatura galega não tinham ilusões sobre o idioma que empregavam: era mesmo um dialecto. Qual era a língua padrão? o português necessariamente. Foi Eduardo Pondal quem, com mais atino, compreendeu a intimidade das relações entre o galego e o português, o «garrido falar», como lhe chamava nos Queixumes dos Pinos, adotando uma ortografia já próxima da portuguesa.
«Foi Eduardo Pondal quem, com mais atino, compreendeu a intimidade das relações entre o galego e o português, o «garrido falar», como lhe chamava nos Queixumes dos Pinos, adotando uma ortografia já próxima da portuguesa»
O problema das relações entre língua e dialecto surgiu pouco depois. Seria legítimo empregar a forma rústica como expressão literária, sem a menor preparação, «como quem faz canastras», diria mais tarde R. Cabanillas? Aqui entraram em acção os escritores da chamada «escola corunhesa» ou «Cova Céltica», a que pertenceu Pondal. O seu esforço, visava forjar uma língua literária emparceirada com o português. Um dos chefes dessa corrente, Carré Aldao, já velho, chegou a colaborar na «Seara Nova», revista portuguesa, defendendo em 1921 a reintegração das duas culturas e idiomas nos seguintes termos: «As xentes deram-se conta cabal da magnitude dos erros passados, e hoxe os pobos duma mesma raça se buscam e chamam, tratando, pese a quem pese, de se unirem numa sola e comum aspiraçom. As dúvidas, desconfianças e receios, de outrora non forom senom a maldecida semente das xenreiras dos poderosos.» — Seara Nova, nº 3, pág. 71.
Infelizmente, os corunheses da «Cova Céltica» não levaram a melhor, na sua campanha de aperfeiçoamento da língua cingida ao português; como se verificou na erecção, em 1906, do monumento aos mortos da revolução de 1846. A legenda em galego, aos mártires da liberdade foi tida como português por ignorantes e fanáticos. O bom galego seria para eles: Ós mártires da libertad, em que o dialectalismo oral ós por aos e o castelhano libertad por libertade ou liberdade, foram a mistura repugnante a que hoje os próprios galegos dão o nome de de «castrapo».
«Infelizmente, os corunheses da «Cova Céltica» não levaram a melhor, na sua campanha de aperfeiçoamento da língua cingida ao português; como se verificou na erecção, em 1906, do monumento aos mortos da revolução de 1846»
Mas houve talvez pior ainda, nesta briga entre o dialecto e língua. Um escritor galego, Augusto Besada, autor de uma História crítica da literatura galega, publicada em 1886, dava ao galego o título de «língua» e ao português o de «subdialecto». Imediatamente acudiu a este despropósito o meu saudoso mestre Leite de Vasconcelos, que em sua «Revista Lusitana» pôs os pontos nos «is», repondo a verdade das relações: o português era a língua, entenda-se a língua de cultura, a língua padrão; e o galego era o dialecto. Isto não diminui de modo nenhum o galego; responsabiliza sim aqueles que, durante mais de um século, não foram capazes ou não quiseram, por ignorância ou teimosia, fazer dele uma língua de civilização.
O militante galeguista franze o sobrolho, quando qualificam o galego de dialecto, e também quando tocam nos seus «monstros sagrados»: Curros Enríquez, Otero Pedrayo, etc. Em sua opinião, isso equivales a pôr-se ao lado dos castelhanos, que desprezam o galego, como se ele fosse um dialecto grosseiro da língua castelhana. Ora aqui, dá-se um tremendo equívoco: os castelhanos sabem que o galego apesar das contaminações linguísticas que lhe foram infligidas, é ainda um dialecto do português; mas como tem já grande parte nele, tem todo o interesse na sua destruição. Claro que os objectivos dum filólogo português são especificamente linguísticos: visam mostrar sinceramente aos galegos que se lhes torna indispensável e urgente a criação de uma língua literária, tomada naturalmente do português.
«Os castelhanos sabem que o galego apesar das contaminações linguísticas que lhe foram infligidas, é ainda um dialecto do português; mas como tem já grande parte nele, tem todo o interesse na sua destruição»
É, pois, da maior necessidade que os galegos tenham a coragem de explicar esta verdade ao seu povo, para que não venha um «estrangeiro» fornecer-lhe essa explicação. Em tudo isto, se nota a inibição lamentável do intelectual galego, que sente a verdade mas teme declará-la à sua gente, como se ela desconheça a causa do seu infortúnio. Todo o nacionalista que se preze deverá cultivar acima de tudo «a aspereza sincera da verdade», como dizia no nosso Ramalho Ortigão, e «abominar a adulação enfática da mentira». E a verdade, a terrífica verdade, é esta: o galego, ou se perde, devorado pelo castelhano, ou se salva, incorporado no português, sua língua natural como pretendia o grande Castelão. Cumpre observar aqui, em reforço do que dizemos que o próprio Castelão, em tudo exemplar, deu também prova de tibieza formulando a sua pretensão não publicamente mas em carta ao historiador Cláudio Sánchez-Albornoz.
Que a reintegração linguística galego-portuguesa é obra a efectivar a curto prazo é coisa que se não pode pôr em dúvida. Ultimamente, entrou nas fileiras dos que defendem a tese reintegracionista um elemento valioso, o professor galego Domingos Prieto Alonso, que rege curso na Universidade de Göttingen (Holanda). A sua experiência numa escola superior flamenga vem a ser de muito peso, já que se trata de casos paralelos, que deveriam ter, justamente, soluções semelhantes. Segundo Prieto, a reintegração não se pode fazer sem algumas perturbações, pois que envolve a desintegração dum sistema linguístico que dura há cinco séculos. Por isso mesmo, a reincorporação ao seu verdadeiro mundo linguístico e cultural deveria merecer não a repulsa mas a tolerância dos poderes oficiais, como acontece com os flamengos e como os suíços alemães, cuja integração linguística não coincide com a integração política. Os galegos pois desejariam reintegrar-se linguisticamente no seu próprio mundo galego-português, apesar de ficarem integrados politicamente no Estado espanhol.
O problema do flamengo já tinha sido abordado pelo prof. Carvalho Calero num artigo do joral «La Voz de Galicia» de 16/8/81; mas Prieto levou o caso às últimas consequências. É agora a vez de perguntarmos: quererão as esferas oficiais ouvir este apelo, que países civilizados já deferiram às suas minorias linguísticas? Há um decreto de 23 de agosto de 1973, permitindo o ensino do português na escola secundária espanhola, que foi posto de lado por falta de alunos. Se ele se tornasse obrigatório na Galiza, muita coisa se alteraria para bem das relações entre Portugal e Espanha, nesta altura em que tanto se fala em Neo-Iberismo.
«Claro que os objectivos dum filólogo português são especificamente linguísticos: visam mostrar sinceramente aos galegos que se lhes torna indispensável e urgente a criação de uma língua literária, tomada naturalmente do português»
É curioso e talvez muito significativo que um distinto intelectual galego, Ramon Pinheiro, nas «Jornadas Culturais Luso-Espanholas», celebradas em Lisboa em 12 de Fevereiro deste ano (1983), tenha sublinhado «a dupla fraternidade que une a Galiza, politicamente á Espanha e linguisticamente a Portugal». Seria caso para perguntar: estará neste momento, Pinheiro de acordo com Prieto? O certo é que parece haver indícios de que alguma coisa se está passando em Espanha após o advento do Socialismo. Pois não é de assinalar e festejar a decisão do município de Olivença, outrora português, para conservar este idioma «como parte dos bens culturais legados pela nação vizinha»? É legítimo concluir de tudo isto que, se Olivença conseguir a autorização para aprender oficialmente o português fica porta aberta à Galiza para obter o mesmo. Aliás, a novidade não é assim tão grande como parece. Um educador galego, João Vicente Viqueira, já no seu tempo recomendava o ensino do português na escola galega, acentuando que isso valeria mais, para reforçar a amizade ibérica, do que a retórica das saudações diplomáticas. E acrescentava: «O galego, sendo uma forma do português, como o andaluz do castelhano, tem que escrever-se como português, viver no seu seio é viver no mundo, é viver sendo nós mesmos». —Ensaios e Poesias, págs. 180 e 208.
Infelizmente, os socialistas que hoje detêm o poder em Espanha e alardeiam o seu carinho pelo povo português, estão peados na Galiza, feudo do conservador Fraga Iribarne. Tudo pois indica que vai continuar a situação histórica, com o regresso dos caciques tradicionais, arvorados em galeguistas cem por cento. Esse panorama, pouco promissor, é-nos dado em excelente prosa galega, já em ortografia reintegrada, num artigo de fundo do jornal argentino «Pátria galega», de Outubro de 1982. Note-se que Buenos Aires, pelas centenas de milhares de galegos que nela habitam, é tida por vezes como capital da Galiza. Tem muito peso o que lá se escreve, e é lá que estão ainda os restos mortais do grande Castelão:
«Em Galiza está a livrar-se uma rija batalha arredor do nosso idioma, batalha que de dia em dia acada mais virulência. É a já velha luita dos que querem uma Galiza autêntica, anovada, sem as eivas que ferem o nosso corpo social, deformado ao longo de cinco séculos de submetimento aos interesses de Castela, dos que a amam dos que se sentem vassalos do poder central e se contentam com fazer um «galeguismo folclórico» coa permissom benevolente dos amos do poder; a luita dos que pretendem devolver ao idioma galego todo o seu poder de transcendência espiritual do nosso povo e o brilho dos tempos passados contra aqueles que teimam manter um idioma supostamente galego, desnaturalizado e desligado das suas raízes históricas, deturpado e ridiculizado pelo poder político do castelhano.
Duas tendências em pugna podem-se definir assim a independentista, que melhor seria chamá-la castelhanista ou isolacionista, e que propugna que o galego se constitua numa língua independente da luso-brasileira, buscando a solução dos seus problemas no castelhano e aceitando como verdadeiro e legítimo idioma galego essa fala deturpada, fragmentada e inçada de termos e variantes castelhanas dês que a língua medieval fora escrita.
A outra tendência é a reintegracionista, que entende que o galego deve voltar ás suas raízes, desprender-se das lazeiras do castrapo e reinsertar-se na comunidade galego-luso-brasileira, sem prejuízo das suas peculiaridades legítimas, para limpar-se das deformaçons inseridas nel nestes últimos séculos de assovalhamento.
A maior parte da intelectualidade galega, e a bem mais activa, tomou partido pelo reintegracionismo tal como em verdade já o tinham feito os grandes devanceiros do galeguismo. A gente aglutinada pola tendências independentista constitui um grupo reduzido, pero que controla a maioria dos mecanismos do poder cultural galego e dominam a Academia Galega assi como o Instituto da Língua Galega, que funciona na Universidade de Santiago».
Feitas estas considerações de ordem geral, rematadas por um texto de alto significado dos galegos da Argentina, falta agora responder a esta pregunta: qual tem sido a atitude da intelectualidade brasileira face ao problema do galego? A resposta não pode deixar de ser negativa: a Galiza está longe, é um povo pequeno e está inserido desde há muito no contexto peninsular, ibérico como colónia de Espanha, só há pouco desfrutando de autonomia. Nem sequer a corrente imigratória de galegos no Brasil justificaria um interesse de maior monta como sucede, por exemplo, no caso da Espanha e da Argentina. É certo que, no que toca ao problema linguístico, o Brasil passou por inquietações e injustiças semelhantes às da Galiza, em virtude da supremacia do padrão literário português imposto, às vezes, com excessiva arrogância aos brasileiros: mas isso passou, felizmente.
Apesar de tudo, e já nos nossos dias, em círculos literários ouvia-se falar da Galiza e de seus escritores, especialmente de Rosalia de Castro e de Curros Enríquez. Sempre era gente da mesma raça, que falava a mesma língua e ansiava pela sua liberdade. Por isso, um Manuel Bandeira, um Augusto Meyer, se entretiveram na imprensa diária como o caso do galego; e, mais próximo de nós, também dele ocuparam Guilhermino César e Gadstone Chaves de Melo. Vejamos, por ordem cronológica o seu testemunho galeguista.
«Em círculos literários ouvia-se falar da Galiza e de seus escritores, especialmente de Rosalia de Castro e de Curros Enríquez. Sempre era gente da mesma raça, que falava a mesma língua e ansiava pela sua liberdade»
Em Agosto de 1965, apareceu no «Jornal de Letras» do Rio de Janeiro um artigo intitulado «A Poesia Galega», com uma apresentação de Eduardo Portella, ele próprio de origem galega. Tratava-se de uma tradução para português de duas poesias de Guerra da Cal, tiradas do seu livro Rio de Sonho e Tempo. O tradutor era Manuel Bandeira, a quem uma delas (Compaixom) era dedicada. Alguns versos dessa poesia suscitam especial reparo e merecem um comentário de primordial importância:
Uha vontade mansa
morna
ineludíbel
de chover docemente
um orvalho de bágoas inconcretas
sobre todo-los-seres
falidos
e infelizes
Os versos 5 e 8 foram assim tratados pelo poeta brasileiro:
un orvalho de gotas inconcretas
falidos
A lindíssima expressão galego-portuguesa bágoas (mais galega talvez que portuguesa), metáfora poética inconfundível, em vez de lágrimas, foi traduzida com menos acerto por gotas, e foi mantido o outro termo falidos, que representa propriamente falhados, frustrados. Não serve ao texto poético, pois evoca ou pode evocar um ambiente charramente comercial. O tradutor, sendo embora um Manuel Bandeira, não foi feliz na aventura em que o meteram.
O galego não precisa nem deve ser traduzido para português porque ele mesmo é português, tanto quanto o português é galego. Se o idioma actual apresenta certas desfigurações que o fazem divergir do português num ou noutro ponto, essas alterações têm uma causa bem conhecida e deverão ser corrigidas, já o estão sendo; mas de modo nenhum legitimam um critério de diferenciação linguística, como por vezes se apregoa com manifesta desonestidade mental.
«O galego não precisa nem deve ser traduzido para português porque ele mesmo é português, tanto quanto o português é galego»
A segunda contribuição brasileira de que temos referência e documentação, foi a de Augusto Meyer, num artigo do «Correio da Manhã» de 29/4/67, com o bonito título de «Português sem Ossos», aplicado ao galego mais suave ainda que o português. O autor de Preto & Branco, Le Bateau Ivre, Camões o Bruxo é, sem dúvida, um dos mais ilustres críticos literários do Brasil. O seu depoimento é por tanto da maior valia para uma justa apreciação do «drama» galego, nome que também adotamos neste nosso breve apontamento.
Logo no começo do seu artigo, Meyer, a quem me ligou grande amizade e admiração, cita o meu nome e o do professor brasileiro Celso Cunha como galegos «honorários», pelos serviços que um e outro prestámos à cultura galega. Em carta que lhe escrevi declarei-lhe que era galego «galeguíssimo«, por ter nascido em Anadia, dentro dos limites da velha Galiza.
O artigo de Augusto Meyer, em duas escassas colunas de jornal, abrange uma enchente de problemas e sugestões. Como já dissemos, o galego é para ele um português sem ossos, e extasia-o a «suavidade saudosa e elegíaca do doce falar galego», patente na «sublime surdina interior» da Negra Sombra de Rosalia, «a mulher que deu voz ao seu povo com a audácia da simplicidade», como diz certa e admiravelmente. Também esboçou o grave problema do idioma galego, insistindo na peugada de Vicente Risco, no instinto suicida que pode levar a Galiza a desaparecer como povo. Não obstante a simpatia que nutre pelo galego, Meyer não tinha ilusões sobre as tremendas dificuldades que iria enfrentar, como no caso do irlandês, língua já moribunda na Irlanda. E di-lo com clareza:
«Todas as nações, por pequenas que sejam tratam de afirmar-se através de um idioma cultural próprio e essa fermentação nacionalista entra em contradição com o espírito ecuménico do momento, quando tende a aumentar a homogeneidade cultural; e as artes e as técnicas começam a envolver o mundo inteiro nas telas da europeização. A produção das línguas menores, sejam de nação ou província, inevitavelmente se acha reduzida ao acanhado âmbito da sua área de origem. Não impede a brutal evidência que, no fundo, os campeões dessas línguas desfavorecidas repitam em voz baixa e com referência ao seu próprio idioma, o que o poeta Curros Enríquez dizia do seu amado falar galiciano, proclamando-o idioma universal num poema arrogante».
«Não obstante a simpatia que nutre pelo galego, Meyer não tinha ilusões sobre as tremendas dificuldades que iria enfrentar, como no caso do irlandês, língua já moribunda na Irlanda»
Só faltou a Augusto Meyer, que pôs o dedo na ferida com tanto acerto, receitar a mezinha para a cura do doente. Se vivesse mais algum tempo, cremos que o teria feito.
Segue-se outro escritor brasileiro que se interessou pelo problema galego, com a singularidade de o fazer em verso. É o professor Guilhermino César, que deu aulas durante alguns anos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Deixou da sua presença excelente recordação e, entre outros trabalhos, publicou em Portugal dois livros: Lira-Coimbrã (1965) e O «brasileiro» na ficção portuguesa (1969). Quando, em 1979, pensámos em organizar em Coimbra uma Semana Cultural Galego-Portuguesa, convidámos Guilhermino César para ser um dos nossos, contribuindo com algum trabalho seu. Não podendo assistir, por estar de abalada para o Brasil, em lugar de tese, mandou uma poesia, que com vénia sua, publicamos aqui:
Amanheci galego, duro vai ser.
A chuva na vaca, o tojo no monte,
a pedra no sino, o moinho a moer.
Amanheci deste jeito, que hei-de-fazer?
O mar de Corunha não quis (e pedi)
me lavar,
as albas de Vigo não me viram passar.
Ó Majas de Orense, garanto: Perdi-me,
sem paz, no fundo imundo do certo ventre
ao entardecer.
Galego, se me dais licença
galego para na lágrima dizer
Orillas del Sar, e nascer
Galego com os rouxinhóis da ramada,
o suspiro do mar, o sino de sempre
nas almas penadas.
Galego no tempo da flor,
só para cantar as rias dormidas
de Padron ao meu coração.
Numa noite (destas) de chuva e de barro
irei, penitente, ao portal de Santiago, mas agora não posso: sou
galego sem lei,
principalmente para cantar no vago
esse mundo verde,
galego a mais não poder.
Esta poesia, para além do seu valor artístico de circunstância, tem um significado que muito convém acentuar. Guilhermino César é um mineiro, e o homem comum de Minas Gerais é uma espécie de galego do Brasil, como nós o somos, também lá ridicularizado por sua esperteza, obstinação, e espírito forreta, baldas que se têm assacado, numa generalização atrevida aos emigrantes de Entre Douro e Minho. Sendo assim, fica apontada a origem galega do mineiro, resultante da emigração maciça de imigrantes portugueses daquela região que deu a povo de Minas Gerais os elementos básicos da sua cultura e do seu modo de ser. Mas não é só isso: ele traz em si o peso durável de outra cultura, a do país gaúcho, onde se radicou. O Rio Grande do Sul é, mais talvez do que Minas, um fiel guardião da portugalidade, no que se refere à língua e à cultura.
É sabido que o riograndense dá ao pronome tu uma divulgação muito maior, como o português, usa o lindíssimo termo rapariga com sentido decente, e conserva no léxico vulgar ainda vocábulos do tempo dos trovadores galego-portugueses. Foi desta miscigenação prodigiosa que teria provindo a galeguidade energicamente assumida por Guilhermino César: galego a mais não poder, como o verde retinto da paisagem.
O último interveniente desta galeria é professor Gladstone Chaves de Melo, autor de dois livros de elevado mérito, Gramática fundamental da língua portuguesa e Ensaio de estilística da língua portuguesa, que lhe concedem autoridade para tratar de problemas linguísticos. A sua conferência, com o título de A reintegração galego-portuguesa, pronunciada em 1980 na Confederação Nacional do Comércio, tem um sentido prático e informativo: esclarecer os ouvintes brasileiros sobre uma questão pendente, susceptível de fazer aumentar o número de locutores do idioma para mais dos 150 milhões que já tem.
Apesar deste aspecto ingenuamente comercial, o trabalho é de grande rigor científico, embora dirigido a pessoas de menor cultura. Além disso, para lá da intenção pragmática, «tem sabor a mais», como diz o seu auto: é o «reencontro de dois irmãos que se separaram há cerca de 600 anos». Cuidamos que, feitas bem as contas, tal separação foi há mais tempo, pois surgiria logicamente com a fundação do Reino de Portugal, em 1139. De qualquer modo, o pensamento do intelectual brasileiro segue à justa o de Castelao, resumindo-se nisto: a História feita pelos Príncipes faz coisas, que a Tradição, obra dos povos, vem um dia a desfazer. Cremos que é o que está sucedendo com o nosso vizinho nortenho.
A verdade é que há na Galiza quem faça alarde de certa «fraternidade agressiva», com lhe chamava Fernando Pessoa. São aqueles que constituem a «Realidade Galega», designação ajeitada para todos os que pretendem não mudar coisa nenhuma e de manter o que realmente está, isto é o castrapo galego em toda a sua triste peculiaridade
A verdade é que há na Galiza quem faça alarde de certa «fraternidade agressiva», com lhe chamava Fernando Pessoa. São aqueles que constituem a «Realidade Galega», designação ajeitada para todos os que pretendem não mudar coisa nenhuma e de manter o que realmente está, isto é o castrapo galego em toda a sua triste peculiaridade. Esta mania de singularidade, levada ao extremo, tem viciado desde o princípio a polémica do galego; e um dos méritos do trabalho de Chaves de Melo é o de refazer com lucidez a verdade dos factos, acentuando a homogeneidade da língua escrita comum durante os primeiros três séculos de cultivo. Eu, por minha parte, citei a parábola do filho pródigo, na versão de André Gide, e tirei esta conclusão:
«A vontade de ser diferente, de marcar fortemente a personalidade, constrangida numa sociedade de que a família é um dos aspectos, será uma experiência que vale a pena tentar? Sem dúvida, mas com risco de um fracasso tremendo. A moralidade desta pequena estória está em que a singularidade só se compreende dentro de um largo espírito de comunhão, que a reforça e engrandece. O culto abusivo e injustificado da diferença, respeitável em si mesma, só pode conduzir à desgraça. Foi o que aconteceu ao filho pródigo; e também o que pode acontecer ao galego, em termos de língua e de cultura.»
Que há pois a fazer? Mudar de rumo, enquanto é tempo, e pedir a São Tiago que torne as águas ao seu moinho, para repor a Galiza em sua esfera. É precisamente o que diz uma bela poesia de Valentin Paz-Andrade, que poderia ser considerada como o Hino da Reintegração Galego-Portuguesa:
Galicia um pouco cada dia morre…
se non viramos rumbo ao navegar.
Ponhamos vela ao vento, que hoje corre
ronsel abrindo cara un novo mar.
Outra vez, meu San Tiago, pé de linho,
às portas do Obradoiro o povo espera
para as águas tornar ao seu moinho,
para responder Galiza en sua esfera.
Cem Chaves de Sombra, Ed. Castro, 1979, págs. 35-36».