Texto lido na cerimónia de entrega do
Prémio Glória de Sant’Anna 2015
24 de maio de 2015
Capela de São Gonçalo – Válega – Ovar
Boa tarde.
Desculpem, por favor, se não respeito totalmente os formalismos próprios de um ato deste tipo, mas é a primeira vez que me encontro nesta situação. De facto, acho que concluirei com o que deveria ser o princípio.
Excelentíssimas Senhoras, Excelentíssimos Senhores, minhas caras amigas, meus caros amigos. A primeira pergunta que me coloquei no momento de conceber as minhas palavras para hoje não foi o QUE DIZER, mas o COMO DIZER. E esse COMO não diz respeito ao tipo de discurso, ao estilo, às questões a tratar, mas apenas, simplesmente, aos fonemas, aos sons, à prosódia, ao sotaque… Isto é, ao modelo estrutural de língua a utilizar. Se eu agora falasse como falo habitualmente, haveria talvez quem pensasse: “olha, um espanhol a tentar falar português” ou “eis um galego como essa mistura esquisita de espanhol e de português”… É por isso que opto agora por uma versão intermédia, por um outro dialeto que considero também parte da minha língua. Mas nem tentarei convencer ninguém de que a minha fala quotidiana também faz parte da língua portuguesa. Com certeza, trata-se de uma variedade do português muito influenciada pelo espanhol, após séculos de contacto, de subordinação estrutural, de submissão cultural… É uma fala híbrida e interferida, uma língua de fronteira, de fronteira difusa, filha de um processo secular de substituição linguística. Porém, não tenho dúvidas, é uma fala que faz parte do português.
Contudo, eu não quero parecer português. Porque não sou português. E eu não quero parecer espanhol. Porque esse rótulo não faz parte da minha identidade. Eu sou apenas galego. Ainda que nem sei muito bem o que isso significa, aqui e agora.
É impossível explicar em cinco minutos a história sociolinguística da Galiza. Nem vou tentar. Com certeza, a consciência na Galiza atual da unidade linguística do português, do galego-português, é minoritária, mesmo muito minoritária. Séculos de subordinação, de humilhação, de destruição cultural, de castelhanização violenta e maciça, deixaram este triste legado. Contudo, alguns milhares de galegos e de galegas ainda estão cientes da unidade linguística, da unidade na diversidade, da diversidade na unidade. Orgulhosos dessa consciência de pertença ao mundo da língua galego-portuguesa. Pertença, e presença, a que não estamos dispostos a renunciar. É por isso que hoje estou aqui. Pela luta de muitas pessoas que nas últimas décadas suportaram censura e perseguição académica e cultural. Pela luta de muitos invisíveis é que hoje estou aqui. O galego, o nosso português na Galiza, morre lentamente, submetido a um democrático extermínio. Abandonado pelo povo galego, que quer ser espanhol. Desprezado pelo Estado Espanhol, que não quer diversidade cultural nem linguística. Porém, alguns decidimos morrer com dignidade, organizados, resistentes, alegres e criativos. É por eles e por elas que eu estou hoje aqui. Com a minha língua híbrida, mestiça, livre. Com a minha língua. Com o meu português, com o vosso galego.
Felizmente, alguns factos abrem a porta a uma esperança. Cada vez há mais lusófonos no mundo que nos conhecem e que nos aceitam na nossa especificidade. É provável que em pouco tempo a Galiza possa por fim fazer parte da CPLP, da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Ainda nem sei com que estatuto. Mas não esqueçam que se tal coisa acontece será pelo empenho sustentado de pequenos grupos de pessoas, não pelo interesse primário de nenhum governo, nem do governo regional galego, nem do governo estatal espanhol, nem do governo estatal português. É por essas pessoas que hoje estou aqui, como mais um falante e escrevente de português, língua que aprendo dia a dia, com muito gosto e com mais vontade. De facto, sei que morrerei aprendendo ainda o português.
Falei já bastante de língua. Quero falar agora um bocadinho, quase um nada, de poesia. A 6 de março de 2014 morreu o poeta espanhol Leopoldo Maria Panero. Eu escrevo poesia por ele. A 23 de março de 2015, um ano mais tarde, morreu o poeta português Herberto Hélder. Eu escrevo poesia por ele. Duas obras para a eternidade. Duas vidas conclusas. Materialmente conclusas. E também a conclusão de uma parte da minha vida literária. O final, espero e desejo, da escrita por necessidade vital. A escrita, a poesia como falsa medicina para curar doenças reais. A minha história poética é uma triste história. Uma história interior. A história de um menino cobarde que ocultou sempre o que havia de portas para dentro. De um menino que um dia sentiu a necessidade de combater a doença. Às vezes a escrever poesia, às vezes com esses medicamentos que o capitalismo oferece para curar as doenças que ele próprio cria.
Sou um péssimo leitor, um leitor anárquico e fragmentário. Um leitor de poemas, não de livros. Um leitor de fragmentos, não de obras. Sou um péssimo leitor rodeado de textos estranhos que devo traduzir. A certidão de óbito de um emigrante galego no Brasil, a certidão de nascimento de uma emigrante brasileira na Espanha, que quer casar com um espanhol. O contrato de uma empresa espanhola que quer explorar as riquezas da Angola, ainda que o povo angolano não tire nenhum proveito disso. As instruções de um inútil aparelho de cozinha, substituível perfeitamente por qualquer faca tradicional. As instalações de um maravilhoso e luxuoso hotel que 99% da humanidade nunca poderá visitar. A certidão do registo criminal de um cidadão da Guiné-Bissau ou do Brasil que quer ser também espanhol. Olhem, que quer ser espanhol. E eu, que não quero sê-lo. Que paradoxo.
Sou um péssimo leitor, repito. Porque não tenho vontade de ler. Porque a minha capacidade de leitura esgota-se entre textos estranhos, entre a vida de milhares de pessoas que nascem, morrem, emigram, casam-se, querem trabalhar, querem estudar, querem viajar, querem cortar fatias de legumes de forma mais confortável… Tal é o meu ofício de tradutor de português na Espanha. Tal é a morte de um leitor rodeado de palavras que não quer ler. No final do dia, não tenho forças para ler. Quero apenas ver o rosto dos meus filhos, ouvi-los falar mesmo numa língua que não é a minha. Saber que o meu país morre. Saber que eu, que não tenho pátria nem quero tê-la, morro com ele. Fica apenas a língua. A minha língua. A língua que escolhi há já muito tempo. A minha língua que morre. A minha língua que vive.
Nunca escrevi por prazer. Sempre por necessidade. Ao único que aspiro é a poder escrever por prazer. De facto, já tenho começado a fazê-lo e guardo um novo livro na gaveta e um outro na cabeça. Escrever por prazer. Isso sim é a literatura. O anterior, não. O anterior era apenas vida. Uma vida agora conclusa.
E acabarei, por fim, pelo que tinha que ter sido o princípio. Pelos agradecimentos.
Para mim é uma honra impossível de mensurar ter sido o vencedor de um Prémio de poesia para toda a Lusofonia – ou para toda a Galeguia, palavra proposta pelo escritor brasileiro Luiz Ruffato, bom conhecedor da Galiza e dos seus conflitos. Ter sido vencedor de um Prémio que leva o nome de uma pessoa tão importante para a literatura em português e para a cultura lusófona global como é Glória de Sant’Anna. E, para mais além, ter sido vencedor de um Prémio que teve como vencedores na duas primeiras edições dois enormes escritores, o Eduardo White e a Gisela Ramos Rosa, autores de uma obra individual com a qual eu nem posso concorrer.
Acho que compreenderão que a obtenção deste Prémio é, para mim, muito mais do que uma surpresa inesperada. Em 1998, todo o meu ego criativo foi satisfeito quando venci na Galiza o VII Prémio de Poesia Espiral Maior, na altura o prémio mais importante para pessoas menores de trinta e cinco anos sem livro individual. Escrevendo em português na Galiza. Escrevendo em português da Galiza. Continuei o meu percurso, acompanhado sempre pelo silêncio da cultura oficial galega e pelo calor dos pequenos públicos, das pequenas récitas, dos grandes amigos. Publiquei poemas, publiquei até livros. Continuei o percurso, sem curar a doença. Em 2014, venci o II Prémio de Poesia O Figurante. Escrevendo em português. Em quinze anos, o egotismo tem tempo para se recuperar. E recebi com perverso agrado uma nova dose ególatra. E também uma nova dose de silêncio. Quando o editor de Da Vida Conclusa, o meu caro Alberte Momán, propôs apresentar o livro para este Prémio, eu pensei: “Pronto, nada a perder”. Sim, nada a perder, com efeito, mas fui incapaz de ver tudo o que era possível ganhar. E aqui estou agora, sem ter deixado um pouquinho de ego para este momento, mas cheio de agradecimento.
Permitam-me, em primeiro lugar, parabenizar o Mbate Pedro, cuja presença agradeço, porque ele também é vencedor deste Prémio. Nesse sentido, gostei imenso de a decisão final não ter sido tomada por unanimidade. Eu não gosto de unanimidades.
Em segundo lugar, evidentemente estou muito grato aos membros do júri e às instituições públicas e privadas que permitem a existência do Prémio Glória de Sant’Anna. Especialmente à família de Glória de Sant’Anna, e designadamente à Inez Paes, que me comunicou o prémio com palavras muito carinhosas. Por favor, continuem, talvez chegue mais uma galega, mais um galego, e diga: “Olhem o meu livro. Eu também escrevo em português”.
Em terceiro lugar, grato ao júri do Prémio O Figurante e ao editor, Alberte Momán, sem eles não haveria livro a vencer prémio nenhum. Pessoa generosa o Alberte Momán, e bom escritor, acreditem. Espero que algum dia decida trocar algumas letras da sua escrita.
Também à Verónica Martínez Delgado, aqui presente, poeta com vasta obra e que nos seus dois últimos livros de poesia, de leitura muito recomendável, já trocou algumas letras da sua escrita. Conversando com ela, quase sempre à distância, estou a aprender a escrever por prazer e não por necessidade.
Aos amigos que hoje não estão aqui e que me têm acompanhado durante muitos anos no silêncio, ao Pedro Casteleiro Lopes, ao Luís Maçãs, ao Alfredo Ferreiro, à Táti Mancebo, ao José António Lozano, ao François Davo. Sete poetas que há vinte anos escrevemos e publicamos um livro que marcou os nossos percursos. Ao meu caríssimo amigo Celso Álvarez Cáccamo, grande poeta de obra escassa, a quem tanto devo. E a todos e todas que, contra o silêncio, continuam a escrever literatura em galego-português na Galiza.
Por fim, à minha esposa Elvira, porque sem ela eu não estaria aqui. Porque sem ela eu seria nada.
E finalmente, permitam-me, ser um bocadinho provocador, um pouco desordeiro, para dar um não agradecimento: caras amigas, caros amigos, não agradeço este prémio ao sistema literário e cultural galego, não agradeço este prémio aos meios de comunicação social galegos, galeguistas ou espanholistas, cuja resposta quase unânime foi e continua a ser o mais absoluto dos silêncios. Próxima terça-feira, serei entrevistado para um programa da televisão regional galega. Porquê? Por interesse pela cultura? Não, apenas porque tenho um amigo jornalista nessa televisão, que brigou por conseguir essa entrevista. Por um amigo jornalista… Que trabalha na secção de Desportos… Quando não há país, ficam apenas os amigos.
Enfim, no silêncio, ou fora dele, continuaremos a escrever. No silêncio, ou fora dele, continuaremos a lutar.
Muito obrigado e muita saúde.
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