Minha esposa diz que eu não tenho senso de humor. Minha esposa não gosta de mim. Eu uso óculos grossos. Eu sou alto e magro. As pessoas dizem que eu sou sujo. Tomo banho como todo mundo. Eu tenho uma escova de dente como todo mundo. Eu tenho um filho de 18 anos. Eu tenho uma arma em uma caixa de sapatos debaixo da minha cama. Meu avô era do campo, um homem peroba, calos até na alma. Durmo mal. Eu durmo pouco. Preparo meu café, intensidade forte, sem açúcar, todos os dias, como ir à missa aos domingos. Quase todos os dias, recolho o lixo da casa. No café da manhã, estou sozinho, todos dormem. O chefe pensa que eu sou medíocre. Faltam 3 dentes, espaços que me acompanham deste a adolescência. tenho taquicardia. Eu não tenho dinheiro. Às vezes eu fico com o dinheiro dos outros. Escondo pacotes de dinheiro em caixa de sapatos debaixo da cama. Eu não tenho amigos. As pessoas não gostam de mim. Eu vivo no quarto, um edifício de seis andares, no centro da cidade. Gosto do centro antigo. As colunas dos edifícios já foram meu esconderijo. Eu gosto do caráter de Mark Chapman. Gosto de ouvir músicas americanas. Fumo muito, meus dentes amarelados, meus dedos amarelados e minha alma amarelada. Sem filtro. Tenho um carro, dentro dele há uma garrafa azul. Ele está quebrado há mais de um ano. À noite, quando todos dormem, ligo ao CVC. Nem toda noite. As paredes do meu apartamento são mais finas do que o papel dos meus cigarros. Algumas noites, entro no meu carro e ligo o som, fumo um baseado ouvindo Woody Guthrie. Meu filho gosta de mim, eu acho. Minha esposa não sabe porque acordo à noite, sobressaltado e falando um nome de uma mulher. Segredos não correspondidos. Eu vivo em São Paulo por 40 anos. Eu tenho um primo que vive nas proximidades. Eu nunca fui vê-lo. Eu cresci em uma cidadezinha do interior. Rua Nova Roma, Alto da Boa Vista, número 13. Hoje, eu vivo no centro pútrido com suas edificações sórdidas. Nunca saí do meu estado. Lembro-me das viagens de trem, bancos de madeira. Lembro-me de cabular aulas. Eu tenho um barbeador elétrico. Eu não sou louco. Só mistérios. Eu visto meu pijama, um para o inverno e outro para o verão. Eu tenho cinco camisas e cinco camisetas brancas. Eu tenho um boné. Eu tenho um cinza surrado terno escuro. Quando me dizem, senhor, é sempre com condescendência. As pessoas me chamam pelo meu sobrenome. Minha esposa me chama pelo meu nome. O funcionário do banco me chama pelo meu nome. Meu filho me chama de “papai”. Eu não sei o que é amor. Eu não sei o que isso significa. Eu sempre gostei de pessoas. Eu não entendo o mundo. Eu não gosto de ler. Eu não sou mais burro do que qualquer outro. Eu não gosto das políticas. Eu não gosto dos policiais. Eu sou claro, minha esposa diz. Minha esposa não gosta de Woody Guthrie, não gosta de músicas estrangeiras. Minha esposa não sabe o que está na minha cabeça. Eu gostaria que as pessoas me chamassem pelo primeiro nome. Eu gostaria que alguém me chamasse de M. Eu gostaria de ser amado um pouco. Eu não irei morrer sozinho.
Fotografia de capa por Marcos Ferreiro.
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