Se tivesse de contar ao mundo o que foram aqueles anos de amizade pelas ruas da Corunha, teria de falar do calor do metal ao rubro e todos a soprarmos à roda o aceso carvão da dignidade. A mais alta ambição foi dedicada a uma cultura vasta, próxima e por vezes vaga, também abissal e transoceânica, que toda queriam percorrer as nossas almas. Prepararam-se os aparelhos, as naus foram desenhadas, mas as mãos não traçaram grandes rotas naquelas sublimes cartografias. Aquecer o metal interno, dar temperatura à medula do poema é tarefa fundamental para enfrentar o trabalho da grande obra. Mas depois de aplicar o martelo que amola e uniformiza o material na bigorna das horas, deve sem falta chegar a água que aplaca a vitalidade do lume. Assim se realiza o trabalho: aquecendo a água e arrefecendo o ferro, suspenso numa nuvem de vapor o ferreiro. O metal então atinge o seu poder, na temperança que é equilíbrio do duro e do brando, entre o diamante esculpido e o leve suspiro duma flor recôndita.
Os anos passaram, e o que era uma alegre frágua tornou-se a fotografia do negro borralho que invade um pulmão impedido. Mas por que este final, digno de um decadente poema romântico? Porventura só merecemos a insígnia dos construtores de ruínas? Dos escritores de livros raros e curiosos? Onde floresce o talento que tanta dignidade reclama? Onde é cultivado o jardim que descobrimos quando as antigas pedras da cidade nos falavam da arte sublime nascida no coração imenso dos poetas? Daquela os poetas foram profetas; porém, hoje sabemos que também devem ser cometas a espalharem sua luz no zénite da sociedade, que resulta ser, na realidade, da cultura a sua carne. Por isso agora digo o ferreiro deve retomar o ofício e concluir as fases metalúrgicas do seu destino. Deve sair aos campos de cultivo, e com uma fouce bem temperada cumprir o seu cometido na hora da colheita, aquela que a nossa cultura engrandece e alimenta.
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