Antes da aurora um sino toca ao longe. A janela do corredor abrira-se devagarinho e a madre oferecera uma reverência à imagem de Nossa Senhora. A imagem de Cristo brilhava na outra mesa. Há, com efeito, quem conheça ambientes de cortar à faca. A mãe fez o que pôde na vida, por forma a afastar a sua filha do inferno. Segundo a mãe, a vida de claustro é o presente de Deus para uma filha, que queria ser escritora. Ela estava a acordar e pé ante pé via letras na parede. Mais um dia. Uma cueca biquíni rosa velho foi lançada na direcção de uma caminha. Sem cerimónia. A livraria que recebeu a escritora era há minutos uma espécie de saguão no qual nada aparentava estar quieto. Javã ficou na fila da frente, já que podia ter mais hipóteses de perguntar alguma coisa à escritora. Mas era sempre um risco. Javã levou três livros debaixo do braço direito. Eram três livros da escritora sem o autógrafo. Javã encontrava-se de folga, tudo era feito lentamente. Os leitores preenchiam aquele espaço da livraria, assim como quaisquer exigências de um acontecimento cultural. Mas Javã queria romper aquele silêncio. Sem mais delongas. Javã pegou no telemóvel e viu se tinha mensagens por ler. Nenhuma mensagem. Depois, marcou o número do correio de voz. Nenhuma mensagem.
A voz de Javã parecia da rádio e uma dezena de pessoas olhava-o de esguelha. Em seguida, apertou o pulso esquerdo com o braço direito. Ao mesmo tempo disse títulos de obras da escritora. Mas uma outra coisa fez-se ouvir. Ninguém deixou de prestar atenção àquilo. Foram toques de mensagem do telemóvel da escritora, que estava junto ao pano de um projector. Havia fotos de rosto e corpo. Da escritora. Javã apertou de novo o pulso esquerdo com o braço direito. O sistema de microfone e áudio fora ligado por um assistente da livraria que tinha posto um casaco de Outono sobre o uniforme. “O teu senhorio tem a intenção de correr com todos. Telefona-me!” As mãos da escritora, que teria uns 50 anos, tremeram e a sua pele pareceu mudar de cor. Ninguém conseguiu reparar nos olhares que a escritora lançou ao tecto daquela livraria. Ao mesmo tempo que apagava mensagens, o seu rosto parecia escapar ao controlo da sua cabeça e os leitores já liam em silêncio um ou outro passo deste ou daquele romance. A escritora tinha sempre o mesmo herói, chamado L, nos romances. Depois, os olhares dela e de Javã cruzaram-se. Uma voz masculina saudou o público.
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Jaime Soares nasceu a 14 de Janeiro de 1987, em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas (Português/Inglês) e mestre em Estudos Anglo-Americanos (Literatura e Cultura), pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Jaime Soares apresentou algumas comunicações em conferências no Porto, em Braga e em Boston (neste último caso, in absentia). A revista da Don DeLillo Society inclui um artigo da sua autoria intitulado “Don’t blame the players, blame the ‘system’: a systemic reading of Don DeLillo’s The Names” (2017). Por outro lado, em 2018, conquistou o Prémio Literário Germano Silva – Rotary Club de Penafiel com a obra A Cor Verde (Editorial Novembro, 2018). Actualmente Jaime Soares trabalha na indústria têxtil, e lê e escreve nas horas vagas.
Fragmento do conto “MERCADORIA” de A Cor Vermelha (Editorial Novembro, 2020), obra composta por dois contos, “Mercadoria” e “Estádio”.
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