O casaco retornara ao roupeiro com o capuz recheado de memórias.
Como cada tarde, ela percorreu a casa. Alheou-se, enxertando a memória nas fibras da prenda, com o ar morto na garganta, e, no tremeluzir da esperança, achegou-se, odiou, distanciou-se, abriu a caixa cor violeta para contemplar as fotografias doutrora. Retornou à emoção e acariciou o fantasma do cabide, intensamente azul, que abrigava o volume da incógnita.
Tinha parado o mundo no momento preciso de florir. O golpe da porta criara vinte anos de ausência, de vertigem na vulva, de náusea na alma que rangia, seca, descarnada, murcha. A lembrança explodia em azul escuro, para deixá-la amputada de afeições.
Apenas o casaco que ele vestira regressava diariamente para reavivar os sentidos e a dor.
Uma luz acendeu-se no cabide.
A luminescência emergia do interior da teia. Retomado, o corpo ausente parecia ler o mesmo livro, na mesma posição de vinte anos atrás. Erguia os olhos, tímido, como a namorada se esquecera de lembrá-lo.
Na agonia do instante, escorregou o casaco. Do corpo, magnificamente conservado, emergiram filamentos que avançaram, a procurar nela o som da subsistência.
A simbiose deixou cheiro a humidade na raiz morna das ruínas.
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