Fotografia de Alfredo Ferreiro: Praia de Oça na Corunha. Fevereiro 2021
A primeira ideia que me surge com este tema é a palavra miragem que significa ilusão óptica formada pelo desvio da luz refletida pelo objecto, ou imaginação. O termo viagem quer dizer sair de um sítio ou um estado para o outro. Os dois termos incidem em transporte e visão. Para que haja visão é preciso que haja transporte no sentido metafisico e vice-versa: criação da imagem. Combinação de objectos construídos pelo subconsciente ou pelas experiências. Decadência ou altivez centrada no objecto.
Pessoa fala acerca da originalidade natural de se ser criança, as crianças não dizem quero chorar. Dizem apetecem-me lágrimas. Usam as palavras como se elas saíssem directamente do coração para o ar. Isto não é sentir. É ver. As crianças foram talhadas para visão. Ver como se fôssemos sair daqui para perder a capacidade de ver e estarmos consumidos nessa visão na forma simples e leve do possível.
Uma vez criança nunca mais, no sentido físico. A possibilidade real de uma viagem no tempo dá-se por via da poesia, com um corpo sem células – a tal sina dita por Vieira. Um destino que nada tem a ver com um caminho ou uma voz impositora, mas um estado. A sina é um estado apanhado por alguém que pode ver. Que pode a ver a si. Por muito tempo. Levado por um transporte invisível e transversal. Fechado a ouvir que lá fora há gente a sofrer, que ele mesmo é os outros.
Ele vai cego. Dizia Borges. O poeta vai cego porque sabe que não sabe ver. Então habita num espaço fragmentado. Impossível. Ele vai cego porque estar cego significa ver com as luzes de um outro dialecto, respira, o poeta subverte as atenções das lâmpadas.
Quem pode ver pode escolher? Pergunto. O poeta é apanhado. Sempre apanhado pelo desconhecido. Vai e retorna no espaço-tempo, faz-se plural para que se liberte. O poeta é aquele que é apanhado pelo destino da sina.
Lembro-me de uma história da Bíblia Sagrada, numa manhã, o ajudante de Eliseu quando saía viu uma tropa com cavalos e carros de guerra que havia cercado a cidade. Geazi, servo de Eliseu, temeu. Vestido ainda de olhos naturais não conseguia ver a fortaleza que tinha. Pensando que os invasores eram mais fortes.
–O que faremos? – Perguntou cheio de medo a Eliseu.
«Eliseu pediu a Deus para que abrisse os olhos de Geazi permitindo-lhe ver. E Eliseu orou: “Senhor, abre os olhos dele para que veja”. Então o Senhor abriu os olhos do rapaz, que olhou e viu as colinas cheias de cavalos e carros de fogo ao redor de Eliseu.»
Quando ele viu, ele se transformou.
Porque é no corpo-criança que ocorre a metamorfose dos lugares invisíveis: a sina.
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