Para Fernando Venâncio, motivado polo seu livro Assim nasceu uma língua (Assi naceu ũa lingua), com agradecimento por nos ter confrontado com nós mesmos para nos tornar melhores.
E para Almudena Otero Villena, que me ofereceu o livro, e obrigou-me a reflexionar, e a sentir a Galiza desde a memória do nosso coração.
O diabo na rua no meio do redemoinho (Guimarães Rosa)
*
– Nonada. Não haja liorta por cousa de língua. Demo tem muitos jeitos de fazer bem mal. Mais o galego não deve alporizar-se e subir e baixar. Fique assim na dúvida. Deus esteja. Abofé que é grão verdade que aqui ninguém di Deus, que é Dios. Ninguém respeita. E eu pensava que era cousa da escola. Que não hai escola e escola havê-la hai-na, que sendo sincera não sei o que aló ensinam. Deviam aprender bem os nomes e a falar bem. Que os nomes dizem e fam muita cousa e também fam o mundo. Que o senhor saiba que não sou aprendida, que nunca na escola andei. Só algũa ves, assim de esguelho, que eu era cativa e já não lembro muito e não quero lembrar, que é como ũa mancha em mim. Era cativa bem cativada, ai senhor!
Eu levava as mulas e as bestas e falava com elas. Não tinha escola não. A montanha era brava e mestra demais. E a vida era ruim mais as bestas entender entendiam. E entendem melhor o galego que o castelão. Porque o castelão não fala desde o peito, fala coa cabeça. Animal não entende não. Eles é que são mais coma nós. Por isso levo aos netinhos a falar coas vacas, coas ovelhas, com Mixirico, burro nosso de sempre, e que sentidinho che tem. Que bom é. É como gente, como gente boa.
Que seique na escola não atendem bem, que têm que tomar ũas pastillas para que lhes venha o atendimento. Dizque que não é cousa do sentido.
E aí vêm as desavenças da filha co genro. O demo no meio do redemoinho. Que não é cousa da cabeça, que é cousa do coração.
O meu mal i o meu sofrir
é o meu propio corazón
Quitáimo sin compasión
Despóis ¡faceime vivir!
O mundo está tolo e o dianho é o nosso conselheiro. Mais agora dizem-me que acougue. Eu já estou acougada, eles é que deveriam rezar e aprender um pouco dos velhos. Não digo de mim, que eu não conto prá o caso. Em faltando o respeito… O respeito não vem da cabecinha. O respeito tem mais calor. Antes havia mais calor com lareira ou sem lareira. Agora prendem a corrente e tudo acabou.
O mundo virou em palavras de plástico. Dizque que o tragamos cos peixes. Eu nunca gostei de peixe. O plástico parecia tão bom e agora anda por dentro de nós. Assim é com tudo, primeiro por fora, logo por dentro. Na época da matança tinha mágoa do nosso porco. Ver os bacorinhos, levá-los prá cama connosco no inverno e depois… a grande cuitelada. É-che a vida. Eu sempre lhes falei, mesmo na matança, falava-lhes, devagarinho, nas suas orelhinhas. Depois ficava doente uns dias. A palavra pode curar e pode matar. A morte matada é dura de levar. Eiqui a palavra perde fôlego, meu senhor. Que tristura bate no peito!
A palavra não é o que parece que é. É como ũa casca. As cousas já não sabem como sabiam. Os tomates, as maçãs, prove de aí da lacena, compradas no Froiz, e não padeça. Nonada. Nadinha de nada. Danado de tudo. E toda essa ciência, de que lhes valeu? Carregam cos livros como fardos de mágoas sem fim. E sabem muito e não têm sabor. Ou sabem demais e perdem o gosto com tanto matruque.
Deviam respeitar mais a gente. Que aprendem na escola? Se não se respeitam uns aos outros, que saberão? Palavras mortas, números mortos para contar cadavres e cadaleitos. E vão aos psicólogos e aos psiquiatras e aos médicos e não sabem falar. Nem uns nem outros, que aqui hai-che caldo pra todos. E a que che tenho que acougar sou eu. Se durmo durmo. Se não durmo penso no Mixirico ou na micha. A micha fala co seu olhar. Porque a palavra não é a casca que a gente ouve. A palavra vem de dentro. É como dar de mamar. É leite e mel, meu filho, ou meu senhor, que já não sei o que digo.
Parece que levam um pau por dentro de tão tesos que estão. E querem curar. E curam-se demais e sempre andam mal. É como um meigalho que lhes caiu. E andam de meiga em meiga que os mira mal. Que o meigalho não está nos gestos nem nas mímicas nem nas orações nem nos recitados. Que vem da força do sentimento. E assim pode ser o sentimento bom ou ruim. Somos meigas e meigos de nós mesmos. E que cura tem isso, meu senhor, que não seja inclinar-se pra terra e falar-lhe aos bichos? Ai! que tolinhos estão! Ficam calados e adoecem e quando falam dizem: aqui estou eu. Grande cousa!
Já sabemos que estão aí, nota-se bem. Que são gente para notar, isso é de ver. Porque hai muito barulho dentro. E está tudo embarulhado e falam e falam e berrram e são-che fachendosos. E não falam uns cos outros porque não se ouvem. E primeiro aprendemos a escuitar e depois a falar. Por isso os animais falam, Deus esteja, que eles escuitam de coração.
Porque todo o mundo sabe que houvo um tempo em que os animais também falavam com palavras e canções mais cansaram de que os levassem a juízo e ficaram mudos. E, pobrinhos, que nem com essas conseguiram que os compreendessem. Porque também Stº António falou para os peixes, que não sei se lhes falaria em português ou italiano, que no fundo e-che igual porque os peixes não ficam na tona, que parvos não são. E isso ensina que os peixes não tendo língua nem fala compreendem o Evangelho, e os homens dão-lhe as costas com todas as suas sabências.
E tenho que deixa-lo, senhor, que o meu netinho tem que tomar a meẽzinha. Ai, que tristura tão grande tenho no peito, que não sei que escola é esta que adoece aos cativos. Ou que pecados teremos que expiar. Ai, senhor, que desacougo!
*
Foto: Ovelhas de Ponte da Mucela (Arganil, Portugal), caminho da Moura Morta, por Alfredo Ferreiro Salgueiro (2019).
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