1.
toda cidade é esboço dela mesma
ou labirinto móvel para cães
e de tanto haver gente sempre nos adequamos a ser outro:
a cidade contém dentro três outras cidades
que nunca se tocam
e somatizam nos habitantes até deformá-los
mas o pôr do sol é sempre esse
desde o principio do sol e do estado das coisas
o pôr do sol que se ama como latão velho
e tudo o mais é variação de pedra
nesta aldeia onde até o deus é de granito
e tem sonhos de pedra
com fêmeas mortais num jardim de areia e pedra
convém fugir dela antes que a velhice chegue
pois também as coisas perecem mais rápido do que percebemos
aqui cada dia é um dia
é preciso partir antes que chegue outro
e é triste notar que nada permanece de nosso
antes mesmo que não se esteja mais aqui
2.
a última estrela da noite vingou na primeira luz da aldeia
foi quando ela veio atravessando os pomares
e as primeiras flores em seu vestido azul
e sentou-se ao meu lado no meio fio
e esperamos amanhecer
3.
este é um templo
como é templo o colar de dentes
desta que agora é minha amante
sua boca que certa vez beijou um folião
no carnaval do engenho novo
desde então tem escama nos dentes
pérolas nos dentes dentes nos dentes
seu corpo é templo por dentro e à volta
maior que toda ela enorme nela
e circunda sua cabeça como um músculo
um templo só pode ser compreendido
de dentro do templo
é no templo que está guardado
esse amor incondicional
somos templo um do outro
4.
a paisagem descola do horizonte
ao pé da fonte comemos tangerinas frescas
enquanto a lua madura num galho baixo
as palavras ganhando massa
na bruma-flor do seu hálito ao frio
simples é pensar nos caminhos que partem desta aldeia
esses trens europeus com trilhos serenos
não foram em vão os favores do vento no cabelo das colegiais
algumas ternas outras safadas
para uma casa ilhada na névoa
seus dois olhos-alimento como erva recém cortada
e esse dia terá sido uma lembrança boa
dentro de um dia bom
não supomos que tão logo seríamos estranhos um ao outro
e a solidão que tínhamos um no outro
terá se tornado mera ausência
5.
um dia dançamos no saguão de um hotel em buenos aires
um dia cuidei de sua costela quebrada
mas irajá não cabia em monsanto
icaraí ou realengo não cabiam
nossas imagens não cabiam na paisagem
quando ela se foi largou os dias
sem ninguém para recordá-los
um dia fêmea uma dia mãe
um dia morta
6.
da memória só sabemos seu nome
ela não existe fora de si
como o tempo não se move fora dela:
a memória só comprova a si própria
equidistante na ida e no retorno
esse caminho do qual nos separamos juntos
estamos na memória como estamos na casa
e nela habitamos sós
quando tudo silencia a música parece ter sido ilusão
monsanto foi o fim de sua própria história
desacontecida conforme contada
as ruas semi-apagadas num sonho velho
lá onde ainda podem ser caminhadas
Márcio-André
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