O multifacético artista austríaco Friedensreich Hunderrtwasser dizia que somos responsáveis e coidamos três peles: a pele do corpo, a roupa e a casa. Fum-me dando conta que a minha casa som eu, que as três vam com nós. Tenho tantos espaços habitados e fum embelecendo todos para viver a minha própria cosmogonia, e os que quedaram. A casa como um cosmos. A casa, no sentido romano de chouça que resguarda, nom como “domus” que exerce domínio e tá submetido a ele (domicílio). Atopei na poética do espaço de Gaston Bachelard a resposta ao como e porquê habitamos o nosso espaço vital. Que bendita capacidade temos de fazer ninho em qualquer lugar ao nosso favor. Situar os corpos confortavelmente nom depende só da quantidade de matéria inerte que o rodeia, aí tá a pergunta proposta de Bachelard: como poder situar-se para seguir a sonhar. A iluminaçom, a orientaçom, a altura, a forma dos recunchos… viver umha casa é como atopar umha cova que lhe convenha ao teu ser entre os cantis se ainda nos deixamos levar por essa intuiçom infantil que nos fazia jogar às “casitas” num espaço elegido. Um pouco de roupa, alfombras, mantas, o computador e comida, fum vendo que é o kit necessário para nom aferrar-me ao material e ir desprendendo-me, ir menos carregada. Já tenho acima de mim os meus kgs, angústias e portar a Lua.
A CASA DO ORÇÁM. A primeira casa onde moramos com Lua tinha sabor a pintura. Foi a casa de Maria Álvarez e seu pai, o sr. Alberto Carpo, importante artista corunhês que nos deixou recentemente. Umha casa que nos acolheu e nos mimou durante a etapa do Teresa Herrera. Confortável e cheia de livros e arte, é ela que abraçava e dava acubilho aos medos, demos e demais. Ali passamos 15 dias mais com Lua depois da saída da incubadora. Apenas durmim a primeira noite: Respiraria? Passara-lhe algo pola noite? Era tal o hábito de ir vê-la à incubadora e fazer canguru que os primeiros dias sentim-me como umha marciana. Sabíamos que logo íamos passar uns dias em casa dos avós em Vilaronte e posteriormente dirigimo-nos a Santiago para tar ao tanto de aCentral Folque.
A CASA DO MONTE DE DEUS. Em Santiago estivemos no monte de Deus, num andar com vistas à cidade e ao pé dumha fonte com águas riquíssimas e onde se tenhem ainda conversas. O andar foi adaptado como pudemos para viver com Lua: hamaca, butaca de braços para biberons, um pequeno teatro cheio de joguetes e detalhes brilhantes a colgar que fixo Pierrot para a estimulaçom visual. No andar de Deus começou o verdadeiro descobrimento e efeitos da música e da poesia. Aprendemos o respeito com os silêncios, a sua escuita amplificada, os amplos colos móveis para dormir, demo-nos conta da sua capacidade memorística e de seleçom musical, ali no andar de Deus derom-se debates filosóficos de alta voltagem, novas visons de futuros possíveis, com a madrinha Marina passamos noites longas numa galeria que mirava o Pedroso e as luzes da cidade. No andar de Deus improvisando a vida, aprendendo a viver juntos, no primeiro dueto. Dormíamos no chao para nom fazer ruído umha vez que Lu pegava no sono, porque qualquer movimento podia despertá-la e era muito difícil voltar a durmi-la, e ainda segue sendo.
A CASA DO GALLEGO EM VILARONTE. Passou um ano e fum-me despedindo de projectos musicais que nom me aportavam mas sim me apartavam dum novo caminho, e davam-me muito gasto energético para outros. Por recolhimento familiar e apoio económico, Pierrot insiste em que devemos ir ao Norte, à Marinha, que quiçá ali há mais trabalho para ele, que é carpinteiro de ofício, informático de carreira e músico de coraçom. Tremei porque voltar para a casa patrucial, neste caso matriarcal (foi construída por umha mulher, seu irmao trouxo-lhe os cartos de Cuba, ela sabia mandar, foi solteira e adoptou à sua afilhada com a condiçom de deixar-lhe a herdança; levo o seu nome, Eugénia). Voltar a esa casa para mim era já um peso com só pensá-lo. Tenho fugido muito dela polo controle, polos berros, e também constantes enfermidades nervosas que me lembram umha infância e adolescência emocionalmente caótica. Tenho comido muito dela a todos os níveis, tenho-me alimentado muito. As fotos da Havana de meu avó derom-me força para a Descarga ao Vivo, as conversas e memórias dos bailes,… Sabia que na volta eu converteria-me em centro, em alvo perfeito a quem disparar em todo o bom e o mau. Som filha vinculeira, intentarom acavicornar-me mil vezes como as vacas ou as cadelas presas, tenho pais obsesionados pola protecçom, valores antergos, boa gente, valentes e fortes. Saim a estudar a Santiago e voltei aos 24 anos, onde fixem ganchilho, dei aulas de pandeireta e plantei ervas aromáticas, mas logo voltei a ir-me em 9 meses. Seria a primeira vez cumha volta mais complexa, com filha “especial” e “francês” divorciado com filhos (isso a dia de hoje, ainda é um handicap em alguns lugares). A casa patrucial tá carregada de imaginário e memórias de infância e adolescência, crua e bruta para umha menina sensível que nom entendia nada daquela complicaçom familiar. Tenho as famílias desestruturadas por parte de mai e pai. E aprendim deles que também se pode fazer família fora da sanguínea… Nessas tou desde há tempo.
Os avós de Lua forom acostumando-se a ela e obsesionando-se cada vez mais pola sua saúde, higiene, exercícios. Quando andará, quando falará, quê come, como dorme, quando caga,… a mesma educaçom de preocupaçom que eu recebi sendo “normal”, a dependência do amor, ou o amor na sua máxima dependência. Em nome do amor e da propriedade privada tudo é possivel. Perguntei-lhes logo: por quê tiverom umha filha? A sua contestaçom foi que era o que tocava umha vez casados. Pensei, estes jubilados ex-labregos ou ex-autónomos carregados de pastilhas, com dinheiro mensal, casa e terras tenhem muita energia para ser focalizada totalmente na família de sangue. Que sociedade mais pobre temos! Mágoa que o concelho nom os empregue como voluntários para melhorar o bem comum-social. Que vaiam cuidar a outros jubilados sem mobilidade, a ler-lhes, que ajudem nos festivais como produçom, que recolham crebas das praias, que vaiam às guardarias a contar continhos e cantar, que recolham flores para boticas, … Repito, tenhem muita energia e nos seus corpos lembranças de movimentos especiais para fazer a vida. Apodera-se deles o aborrecimento, o medo cultivado da morte, os meios de comunicaçom cegam-nos, e som carne da falsa política do terror. Mas o mal do aborrecimento é o pior, é bem fatalista, dá música aborrecida, conversas aborrecidas, movimentos corporais rígidos e torpes, mandíbulas rígidas … 😉
Na infância e adolescência nom me faltou comida, fum vestida na época de Suárez (quadrou com ser meu pai autónomo) numha boutique de Ribadeu para a roupa dos domingos. Minha mai ainda hoje compra-lhe pagéis a Lua semanalmente. E, a propósito, bem lindos todos. Materialmente nom me faltou de nada. A ela tampouco. Espiritualmente faltou-me apoio nas minhas decisons, ânimos nos novos projectos, abraços e beijos, elogios e fomento da autoestima. Porque para meus pais sempre fum gorda, grande, grande, gorda, séria, contestona, rebelde… Activarom-me de pequena a leitura e a música sem saber das consequências. Uma vez que isto formou parte importante da minha vida já nom tivem apoio, aumentarom os medos, as queixas, os reproches, e, portanto, frases como: nom vades ter gente no concerto, nom ides vender este disco, evocaçons de competência com outras vozes (que nunca suportei) comparaçons,… Fum comparada com o resto das nenas da vila-aldeia que ajudavam na horta, alindavam vacas e no entanto eu construindo melodias e ensaiando com uns rapazes de maior idade do que eu. Ainda seguem a comparar a Lua com os filhos-as das vizinhas. A ignorância é perdoável e a falta de compaixom, a falta de sensibilidade e compreensom e achegamento a este nível da diversidade funcional pois suponho que também.
A vida é tam sabia que se nom queres umha cunca tens sete, algo assim di o probérvio galaico. Entom Lua é pequena, delgada, quiçá dos seres humans mais pequenos que há na terra, cum crescimento harmónico minúsculo muito curioso, bela, linda, fai o que quer e como o quer e pode, ainda que sua avó insiste e lhe ordena que coma, que feche a boca, que abra as maos, que levante a cabeça… é mágoa escuitá-la dizer tal, mas assim é. Lua é livre, porque a liberdade tá no pensamento, no imaginar. Ela tem quase todos os hemisférios cheios de água e o cérebro reptiliano (primitivo) intacto, à sua maneira é também dos seres mais livres da terra.
Lua precisa num espaço essencial o chao. A casa é o chao. Estar no chao é fundamental para ela e, polo que vou vendo com o meu corpo, também para mim. Rolar no chao, sentar, jogar, bailar, experimentar-se nele. Numha casa de lavrança tipica o centro é a cozinha e nom há respeito polo chao. Lu precisa dumha casa onde se tenha dinâmica e consciência das acçons ruído-silêncio e soidade. Ela tem umha escuita ativa muito amplificada e esquisita. Para ela, deve haver no falar momentos de silêncio expectante e respeitoso. Insistir em que fale nom tem sentido. Insistir para que che conte um continho, como se di popularmente aos nenos, nom tem sentido. Porém, atende e contesta a um timbre com intencionalidade, quando o sentimento é claro e direto, quando nada se pide e tudo se dá num espaço -tempo sem pressom. Creio que isto é paraíso para todos-as, nom é? Lu precisa tar confortável nas posiçons, nos colos. Coma nós. Tar no colo com ela é consciência corporal por parte do adulto ademais do alento tranquilo.
DESDE A CASA DA LUA. RINLO. Passamos 7-8 meses em casa do Gallego, assim chamam à casa de meu pai, e dali saímos sem saber para onde ir enquanto as Marés eram altas e o câmbio político umha certeza. Nós cambiando e o tecido social também, novos valores em escanos e quadros de mando caidos. Mentres, estivemos dias em casa de tita Uxía, uns dias na Ilha de Arousa, uns dias em casa de tita Cata e chegamos a um porto de mar abrigado chamado Rinlo, o povo mais lindo do litoral cantábrico luguês. A casa de María da Ica (também vinculeira) é a nossa morada, agora a Casa da Lua. O chao necessário para viver nel, o ar do mar para medrar, vizinhos que ajudam desde o primeiro dia pois o casco marinheiro tem as casas pegadas e tam acostumados a se apuxar entre eles. Bem se vê que foi indispensável desde há tempo. Dixerom-me as mulheres que ainda que a gente de fora de Rinlo falava mal deles por ter carácter e ser marinheiros, eles-as aprenderom a fazer de tudo, trabalhar no mar e nos hortos, vender produtos de mar e terra, ir polas oucas da terra (algas de adubo) e as oucas dos quartos (para botica). É o porto que mais nos lembra a umha antiga Bretagne. Temos um quarto de dormir onde podes escoitar a Lua acordar-te se tás no andar de abaixo, os metros quadrados precisos, umha cozinha de lenha ainda com a placa de ferro, umha cetárea de peixe e marisco a 4 passos literalmente, de onde sai o melhor bogavante para o arroz caldoso, um cacho de costa de luxo sem edificar, Ribadeu ao pé e tempo e ganas para fazer música, e uns horários estabelecidos para o tempo livre de mamá e de papá. O mais delicatessen é que Lua tem umhas vizinhas pequechas e espabiladas de 4 e 2 anos que fam muitas perguntas e gostam de tar com nós. Canela!
Todos estes câmbios e variaçons forom necessários, é umha eleiçom de vida estar em contínuo movimento. É a variaçom um dos elementos fundamentais de Anat Baniel Method. Às vezes culpabilizei-me por falta de estabilidade e hábitos sagrados com Lua, pensei mesmo que podíamos aumentar-lhe a sua rigidez, mas aos poucos desboto todo tipo de regos que levem à zona de confort e ao ver como ri com os sons inventados de Catarina, ou como pode desfrutar de escuitar ao vivo a Guadi, ou descobrir um ar de mar especial… afianço-me no que lhe digo muitas vezes a Pierrot. E se colhemos umha caravana e rota com Lua e a nossa música? Passo de 0 a 100 😉
Deixo-vos esta cançom de Pink Martini coa que dança, move as pernas a tope, bota gritinhos de máxima felicidade e ri-se amplamente. A grande casa de Lua Awel, a música.
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