A passear por Tomar, por acaso entrei no jardim da Mata Nacional dos Sete Montes, a sul do castelo dos templários. Comecei a caminhar intuitivamente até que topei com um cartaz que anunciava a direção da “Fonte do sangue”. Então pensei: isto é providencial, vou caminho da Fonte do Sangue e eu vestido com a minha camisola de motivos históricos, um dragão e um leão como os que provavelmente teriam usado os descendentes da dinastia galaica que há muito ergueram este castelo na conquista das terras a sul do reino. Assim, sentia, tudo eram felizes indicadores para a minha primeira visita ao castelo templário. Uma visita esotérica sob o sol comum que aos visitantes vulgares aquece.
Porém, o caminho perto do castelo nunca chegou a revelar-me a fonte do que quer que fosse aquilo, e o castelo mesmo não quis mostrar-me sua entrada, fazendo-me permanecer sempre por fora de seus muros. O tempo acabava-se enquanto eu andava perplexo o perímetro, e já devia baixar sem demora para comprar o pão na vila. Ao tempo, a minha camisola de profundos alicerces históricos se tornava um fato de simplicidade turística, e as minhas pretensões desejos de tele-novela.
No final da manhã entrei numa livraria de velho em que achei uma edição portuguesa do poeta galego Ernesto Guerra da Cal. O livro tinha uma dedicatória para alguém que o não conservou, ou a quem lhe foi roubado, ou espoliado. Poesia de um galego escrita em português, editada em Portugal e dedicada à Galiza, e o meu país nem sabe nem quer saber o quanto os seus filhos a amam, seus autênticos filhos e não aqueles que a herdam para a malbaratar nos becos que Madrid destina às anomalias e às não declaradas colónias, até por essa colonização tiver começado antes de a colonização ter sido iniciada. E para além desses becos em Madrid não há nada de bom, só deserto e excrementos. Mais além há de novo gente, com certeza boa gente, na ausência da cidade.
Penso por um instante em comprar o livro do Guerra, mas finalmente dá-me nos olhos uma antologia de poesia portuguesa 1940-1977. Então sim compro, decidido a beber nas fontes do Guerra e deixando este ficar na estante para algum dia voar para a mão de quem precisar descobrir o poeta de além-Minho que se converteu num dos mais reconhecidos especialistas na obra de Eça de Queirós, um galeguinho que fugiu das garras de Franco para lecionar longo tempo nos EUA. Conhecia a antologia, e gostava muito dela desde que o poeta Amadeu Baptista no-la tinha presenteado há muitos anos, e achava que não tinha sido reeditada. Apanhei-na, abri a capa e na portada vi escrito em letra manuscrita o nome de um dos autores da antologia, E. M. de Melo e Castro. Outro espólio, ou talvez o desinteresse dos descendentes de quem tanto amou a poesia.
Deduzi de tudo isto que devia ser uma obra que visa a fraternidade entre poetas, devido a toda a energia poética que contém e a tanta com que deveu ser elaborada. Em verdade, no exato momento em que a vi já sabia a quem a havia de entregar como presente. Assim foi, eu senti imediatamente que acabava de comprar um livro que não havia de permanecer muito comigo, um livro com trinta e cinco anos que ainda pretendia rumar para um outro destino e repousar ainda nas mãos de outro poeta. E não ia ser eu que lhe empecesse o caminho.
Poço Redondo (Junceira), 5-7/9/2015.
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