Foto: Porto de Ribeira por Alfredo Ferreiro, 2010
A máscara
Havia uma máscara inaudita
que cobrou vida. E comia
a vida daquele que a usava
daquele que a mantinha viva
Havia uma máscara tão grande
extensa como a vida duma vila
duma cidade dum país
duma sociedade ocidental
oriental meridional setentrional
Havia uma máscara global
que se alimentava de toda a vida
e nada restava por devorar
debaixo da máscara invasiva.
Mas um dia ninguém sabe porquê
falhou uma orelha, uma que
não acudiu não quis mais suster
ou quis ouvir outras melodias.
Então a máscara caiu e a gente sentiu
que trás a catástrofe tinham nascido lábios
e alguém disse que se tinham aberto olhos
e alguém viu que se moviam bochechas
e uma face sorriu iluminada de alegria
A máscara caiu e a pele sentiu o vento
e debaixo da fronte um pensamento eclodiu:
Assim é sempre o nascimento do mundo
revelando-se o que é perante o que parece ser
mostrando-se o falso face ao verdadeiro
*
Há tempo que queria escrever sobre esta crise político-económico-sanitária local, regional, nacional, estatal, mundial… Não vejo muita contestação da intelectualidade a tamanhas restrições vitais, e é algo que me admira. Acho que deve ser por medo, mas medo a quê? Muitos intelectuais que passaram à história não deixaram de passar fome, cativeiro, censura, castigos públicos, e nem por isso abandonaram a expressão daquilo que seu íntimo reclamava, especialmente se tinha a ver com a falta de liberdade. E lembro agora as palavras de Mário Cessariny:
“Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa. Autoridade é do que é autor… Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime… Quanto mais livre mais capaz” (cf. As mãos na água, a cabeça no mar).
É evidente que não somos livres já, mas como não houve sintomas de guerra (embora estejamos a ser conquistados pelas grandes fortunas mundiais), nem bandeiras de ditadura (embora os governos cancelem os direitos civis sem apoio na ciência), nem dados sobre a censura (embora muitos sanitários devam evitar manifestar sua opinião ante a ameaça de perder o trabalho), nem deixam de existir meios de comunicação (embora tenham erradicado o debate plural)… podemos seguir a viver nesta passividade enquanto a qualidade da vida não deixa de cair. Mas, por quanto tempo?
Não negarei qualquer cousa a respeito da chamada de crise sanitária, nem a afirmarei (embora não possa compreender como em países têm morto menos pessoas no ano crítico do que no anterior); nem direi que há uma guerra financeira mundial por trás, nem o negarei; nem afirmarei que os cidadãos se regem mais pelo medo do que pela razão, nem o negarei. Não vou julgar o trabalho e as atitudes de ninguém. Simplesmente, direi que “não vou por aí”.
Eu falo do que estamos a perder, e que agora vou dizer. Vários patrimónios é que estão a desaparecer, para além dos recursos económicos: a sociedade e a cultura, que são imateriais e muito mais antigos que o negócio do petróleo, das especiarias ou até do ouro. Sem relações humanas, sem manifestações de carinho, sem liberdade de reunião, sem hipótese de aventura amorosa ou intelectual, com toda a vida restrita a um círculo asfixiante de poucas horas e muito limitado território a vida é triste, e o medo a não ter que comer (em tantos países uma situação historicamente tão próxima) relega a atenção à alma, o que por sua vez anula a vontade de imaginar, de criar, de partilhar…
Tudo isto produz mudanças de frequência na energia das pessoas, mudanças que sempre foram reguladas coletivamente por aquilo que chamamos de bens ou costumes sócio-culturais, e que passaram a ser proibidos por decreto: as festas populares, os enterros, os eventos culturais e gastronómicos, as romarias, as feiras, os concertos… todo aquilo que nos confortava na reunião feliz com o outro, fosse conhecido ou por conhecer. Agora impera a desconfiança, o risco incerto de contágio antes do que o real perigo de morte social. Há pessoas que me têm dito que agora já nem têm vontade de ter com amigos; acostumados a trabalhar e atender a família unicamente, alguns não celebram festas nem sequer com os avós…
E eu não vou afirmar que uma intenção muito obscura deve estar a trabalhar para estabelecer pela força um novo quadro referencial no âmbito das relações e os afetos, nem o vou negar. Porque “eu não vou por aí”. Mas algo muito importante pode estar a mudar no modo de vermos a vida, e semelha que ninguém se apercebe embora tenha uma importância fulcral. Não pretendo acrescentar o medo, podem acreditar. Só preciso exprimir o que sinto, porque quero falar livremente e afirmar que eu “não vou por aí”.
*
NOTAS:
“Não vou por aí” pertence a um verso do «Cântico Negro» de José Regio, autor português de que no passado mês se cumpriram cinquenta e um anos do seu falecimento. O seu poema foi declamado magistralmente por Aurelino Costa, grande amigo desta revista, e que no Raias Poéticas de 2018 tivemos ocasião de gravar:
E agora, quero fazer um convite: se alguém partilhar esta preocupação e desejar converter este post no início duma série inspirada na atitude inaugurada no poema de José Régio, só tem que mandar seu texto alusivo a esta revista, para nós o publicarmos.
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