Não sei bem por onde começar para definir a ampla personalidade humana e criativa da poeta, escritora e ativista cultural Lucila Nogueira (1950-2016). Ela fugiu para a outra margem da vida o 25 de Natal em Recife. Esta carioca que passou a viver nas latitudes nordestinas teve uma enorme atividade como poeta e como professora de literatura da Universidade Federal de Pernambuco. Os galegos não podemos esquecer as origens luso-galegas dos seus avôs, o paterno de Padrón e o materno da Régua (Portugal). As raízes galegas sempre despertaram na sua memória a revelação das origens de uma maneira muito leal e naturalizando as suas atividades e irmandades coa Galiza. Lucila visitou e percorreu as geografias galegas, partindo de Susavila nas terras da Maía e Padrón, lugarejo do seu avô Nogueira, e dessas viagens publicou o livro de poemas: Amaya, onde manifesta a sua lealdade a Galiza. Diz o professor Vicente Masip, a respeito deste poemário: “Amaya nos introduz num mundo novo, saudoso e melancólico, povoado de lendas e mistérios onde se adoram pedras (dólmenes e menires)”.
Mas a grande novidade de Amaya foi a de abrir no Brasil um certo entusiasmo naqueles poetas e escritores, filhos e netos de galegos, de incidir na recordação das suas origens galegas e, inevitavelmente, não negar aposento saudoso à Galiza. Um caminho quase aberto que iniciou Lucila Nogueira. Aquilo de que o seu avô nascera nas terras de Rosalía de Castro, testemunha outra das vocações rosalianas que manteve a poeta brasileira durante a sua vida. A Galiza, para Lucila Nogueira, era como uma relíquia que havia que guardar sem mácula, em pano limpo e de seda. Onde houvesse um galego lá estava ela a conversar. Lembro o primeiro encontro e impacto de irmandade que eu tive quando nos conhecemos no “XII Festival Internacional de Poesía de La Habana” (2007). Servidor estava a dar uma palestra sobre Rosalía de Castro e José Martí, no “Instituto de Estudios Martianos”, apresentando o ato Armando Hart, o primeiro ministro de Educação que teve a revolução cubana. Quando ele diz que eu era galego a Lucila, exclamou: “Eu também sou galega”. Ela ia à frente da delegação brasileira, insistiu que eu tinha que ler o seu “discursinho” no ato inaugural, e li. Aos dois dias os congressistas viajamos a Villa Clara, ao Mausoléu de Che Guevara, onde pronunciei a conferência: “La revolución del poema en Che Guevara”. A Lucila, mesmo alucinada, veio junto a mim e disse-me que tinha que ir em novembro ao Congresso Internacional de Literatura de Fliporto que se celebrava em Porto Galinhas (Recife), a pronunciar essa mesma conferência. Lá fui, cheguei a Recife procedente de Salvador de Bahia, e cheguei a Recife. Lá estava a Lucila à minha espera no aeroporto com o maquinista da camionete que me levou ao hotel. A meia tarde fomos a Olinda, essa cidade maravilhosa com imensas igrejas barrocas, desde onde se divisa a formosura de Recife. Ela não deixava de repetir que tinha uma grande surpresa para mim. Até fiquei um bocado atordoado com tantos dizeres da surpresa. Pela noite chegou a surpresa no jantar, em aquela longa mesa de congressistas havia duas cadeiras vazias, uma frente a outra, uma para min e na outra sentou-se Nélida Piñón. Lucila Nogueira bateu de mãos e sinalou a irmandade dos galegos. Foi uma imensa surpresa falar coa Nélida, das suas recordações familiares, de Cotobade, Redondela e das suas benquerenças com a Galiza, sobre a que, também, sempre fala.
A Lucila era assim de ativa e espontânea em determinar coisas para a alegria da gente. Em 2011 ela soube que ia a Buenos Aires e a sua persistência obrigou-me a fazer escala em Recife, tudo para que falasse para os seus alunos de letras na Universidade Federal de Pernambuco sobre Rosalía de Castro. A Lucila fez uma introdução muito vibrante e exaltada de Rosalía e da terra de Padrón e A Maía, dos seus antepassados de Susavila. Pela noite fomos várias pessoas jantar à praia, perto duma favela. Algumas pessoas ficaram espantadas pelo perigoso que parecia ser o lugar: para calmar a situação ela saiu com suas habituais e suntuosas vestes brancas e seu chapeuzinho neoclássico a dar a boa noite aos favelados. Estes a cumprimentaram com o rigor e respeito duma princesa. Dona Lucila para aqui, dona Lucila para lá. Depois a dar um passeio pela longa Avenida de Nossa Senhora da Boa Viagem, ao pé da praia, a falar dos grandes vultos da literatura da lusofonia.
O legado humano que nos deixou a todos os que a temos conhecido é tão imenso que por vezes não o podemos digerir na sua totalidade. Estou seguro que com a morte de Lucila Nogueira não faleceu o seu sentimento pela Galiza, que transmitiu em conhecimento e vontade a tantas pessoas, alunos e a todos os que ouviram a sua voz em dádivas de florilégio para a Galiza que ela sentiu, amou e percorreu. Para os galegos, encontramos o seu insigne testamento nos poemas de Amaya, libro dedicado a Pilar Vázquez Cuesta. Com esses percursos exploratórios culminou uns versos de loa e de brio que, mesmo, participam na difusão da identidade da Galiza e dos galegos, dentro da fecunda irmandade da lusofonia. Lucila não foi uma mulher recatada quando a verdade das coisas exigia soberania e preponderância. A Galiza continua perdurando no que a Lucila Nogueira propagou. Obrigadinho, princesa do dia.
You might also like
More from Crónicas
Primeira Crónica desde Xai Xai: a chegada
Participação de poetas da Galiza no VII Festival Internacional de Poesia de Xai-Xai, Gaza, Moçambique Primeira Crónica desde Xai Xai: a …
Adeus, ti, Ponte Nafonso I por Ramón Blanco
"En la ingeniería civil la seguridad estructural está en lo más profundo de su identidad, por lo que no puede admitir …