Aquando da gestação de Caminos bajo el agua, um livro nascido das minhas leituras de textos chineses antigos, não calculava que temas haviam de vir à luz. De partida interessaram-me os mitos que revelavam uma relação com a paisagem.
O pensamento chinês primitivo, alicerçado no xamanismo, estava pouco inclinado a criar deuses, mas prestava atenção aos fenômenos naturais, os rios, o Céu e a Terra, as forças com as que o homem há de pactar para sobreviver.
Nos mitos mais antigos da China, a Seca, filha do Céu, figura sob o nome de Nü Ba, um gênio feminino que tomou forma aos poucos nas lendas e crenças populares.
Desta personagem esvaída seduziram-me os rasgos mencionados nos estudos do sociólogo Marcel Granet. Eram como que pinceladas precisas, mas cada uma de origem diversa. Antes de determinar o plano do livro, fiz este poeminha para plasmar, como se de um apontamento a lápis se tratasse, essa figura mítica tal como a havia imaginado um conjunto de vozes ao longo dos séculos.
Afinal, muitos apontamentos deste tipo levaram-me ao Rio Amarelo e aos seus desbordamentos, o tema central de Caminos bajo el agua, e Nü Ba ficou na margem, “correndo mais veloz que o vento”, segundo se diz dela, tanto na terra da velha China como na minha mente.
NÜ PA
Son corps toujours nu,
Tordu comme un arbre mort,
Parcourt la Terre plus vite que le vent
C´est la Naine Nü Pa
Ses yeux ouverts jour et nuit
N´ont jamais versé de larmes
Et la source sur ses lèvres se tarit
C´est Nü Pa la Proscrite
Ses pas transforment la Terre
En désert quand elle marche,
Le visage éternellement levé vers le Ciel
C´est la Déesse Nü Pa
Le Ciel, ayant pitié d´elle,
Retient la pluie là où elle passe
Pour ne pas l´aveugler
C´est Nü Pa la Sécheresse
Catherine François
Tradução (Alfredo Ferreiro)
Seu corpo sempre nu,
torto como uma árvore morta,
percorre a Terra mais veloz que o vento.
E a anã Nü Pa
Seus olhos abertos dia e noite
nunca derramaram lágrimas,
a fonte em seus lábios se mirra
É Nü Pa a Proscrita
Seus passos transformam a Terra
em deserto quando caminha,
o rosto encara eternamente o Céu
É a Deusa Nü Pa
O Céu, compadecendo-se dela,
retém a chuva lá onde passa
para a não cegar
É Nü Pa a Seca