Conheci a Sandra naquele café onde os boémios da cidade gostavam de se reunir para ouvirem ler poesia. Naquele café era comum que espontaneamente alguém subisse naquele palco, fizesse soar a sua garganta para atrair a atenção do público e começasse a ler poemas, por norma, próprios. A maioria dos textos que se liam eram fracos, mas naqueles tempos, a poesia era uma arma de protesto que para o pessoal mais novo tinha um valor que as autoridades não conseguiam perceber. Por isso, deixavam-nos ler e recitar poesia naquele café, cujo nome era, precisamente, La Bohème.
Tinha visto a Sandra três vezes antes de iniciar a minha aproximação dela. Ela não lia nunca os livros que pelo local havia. Não parecia estar interessada em ler poesia, só em ouvi-la, o qual acontecia constantemente entre as sete e as doze da noite. Também não tomava nunca nada. Ela ficava num cantinho, de pé, a olhar para o palco, inclusive quando ele estava vazio, como se ficasse à espera de alguém lá se debruçar e começar a vibrar com a leitura da poesia. Não falava com ninguém, estava sozinha.
Foi assim que, depois de três vezes, quis falar com ela. Era uma mulher bonita, de ares tristes, melancólicos. O seu aspeto bem podia ser o de uma poeta maldita. Sim, parecia saída de uma narrativa gótica do século XIX, se calhar da pluma do mesmo Edgar Allan Poe.
Aproximei-me dela com um copo de cerveja na mão.
– Olá, como te chamas?
– Sandra.
– Prazer –cumprimentei-a e disse-lhe o meu nome–. Gostas de poesia?
Reconheço que a pergunta era estúpida demais, aquele local era apenas frequentado pelos amantes da poesia.
Contudo, os olhos dela iluminaram-se quando se espetaram nos meus enquanto me dizia:
– Adoro poesia –disse ela com uma voz quase impercetível.
Eu aproveitei para tirar do meu peto o meu último livro publicado, um poemário bastante breve intitulado Sombras de ti, onde refletia a minha tristeza por um amor passado.
– Ofereço-to –disse-lhe.
Mas ela não quis recebê-lo. Disse-me:
– Quero que tu próprio me leias os poemas.
– Sob a luz da lua?
– Sob a luz da lua.
Saímos de La Bohème. Eu nem a vi sair, embora estivesse ao meu lado. Escorregou como uma lombriga por entre a massa de pessoas que na altura estavam no café. Voltei encontrá-la fora, na porta. Sem dizer uma palavra, ela caminhou na direção de um parque que havia na frente do café. No centro havia uma pequena elevação. Aliás, nesse dia havia lua cheia.
Eu senti que me poderia novamente apaixonar por uma mulher. Ela poderia ser a minha nova musa. Enquanto olhava como ela caminhava para o cimo daquela pequena colina, o meu coração latejava maluco. Ela, mais do que caminhar, parecia fluir. O seu ar triste, melancólico, estava a me apaixonar. Já amava aquela mulher.
Quando chegámos ao topo da colina, ela sentou no chão, fez-me um aceno para eu imitá-la e disse-me:
– Lê-me os teus poemas.
E obedeci. Comecei a ler pondo na recitação todo o meu espírito, até mesmo deixar cair alguma lágrima dos meus olhos.
– És um grande poeta –disse-me ela entre sussurros.
Eu apenas sorri.
– Sabes? –prosseguiu ela–, acho que poderias unir-te ao meu clube.
– O teu clube?
– É um clube de poetas. Somos pessoas que amamos a poesia por cima de tudo.
Eu gosto muito de poesia, mas gostava ainda mais dela.
– Gostaria de conhecê-lo –disse eu–. Como se chama o clube?
– O clube dos poetas mortos –disse ela.
Achei engraçado o nome. Era o mesmo do filme e comentei-o com ela.
– Exato –respondeu ela–. É uma homenagem àquele filme. Tu não gostaste dele?
– Gostei –menti, porque, embora conhecia o filme, nunca o tinha visto. Até sabia que o protagonista era Robin Williams.
Eu esperava que ela pegasse na minha mão para me conduzir ao lugar onde estivesse o clube, mas apenas se ergueu e caminhou para o pé daquela mesma colina. Eu segui-a. A noite estava fresca.
Porém, não caminhámos muito. Fora do parque, mas na parte oposta ao café de La Bohème, havia um prédio muito velho, eu diria que mesmo abandonado. A Sandra entrou nele e desceu pelas escadas que iam para os andares por baixo da rua. Eu seguia-a, impulsionado por aquele amor que me tinha invadido, mas ao mesmo tempo morto de medo, a escuridão era cada vez maior.
No segundo andar subterrâneo, ela bateu numa porta. Alguém abriu. Entrámos. Gostaria de dizer que atravessámos um corredor, mas de facto passamos por cima de uma passagem de madeira. Por debaixo só havia escuridão, o qual me confirmou que aquele edifício estava num estado lamentável e que estava a afundir. No entanto, não disse nada e segui os passos da Sandra. Chegámos a uma sala, em cujo centro alguém lia poesia à luz das velas. Um grupo de pessoas sentadas no chão seguiam a leitura no mais absoluto silêncio, o qual era impensável em La Bohème, porque lá não respeitavam as leituras nem os recitadores.
Nós sentamos também no chão, que era de madeira, a qual rangeu quando recebeu os nossos corpos, mas contra o que eu esperava, a madeira estava quente, era agradável o seu contato.
Quando o poeta terminou a sua leitura, todos aplaudiram educadamente. Que diferença de comportamento entre aquele público e o do café. Estava a gostar. Pareceu que a Sandra me leu o pensamento, porque se virou para mim e disse-me:
– Estás a gostar?
– Muito –disse eu.
E então apareceu no palco o Robin Williams. Eu não podia acreditar os meus olhos. Mas nem só isso, ele falava em inglês e eu percebia tudo, quando nunca conseguira dominar esse idioma. Fiquei de boca aberta. Ele só apresentou o seguinte poeta. A seguir, uma mulher subiu para o palco e começou a ler… em russo! E eu entendia tudo! Como era possível? A Sandra, ao meu lado, mostrava uma expressão de total felicidade. Contudo, eu não consegui calar e dizer o que nesse momento estourava na minha mente:
– Olha, o Robin Williams está morto. Como é que ele veio aqui?
A Sandra olhou para mim, divertida, como quem explicar coisas óbvias para um menino.
– Já te disse que este é o clube dos poetas mortos.
Nesse momento senti terror. Ergui-me e encaminhei-me para a saída. Porém, a passagem de madeira pela qual tínhamos chegado até àquela sala já não estava. A porta da entrada era inalcançável para mim do outro lado do fosso. Mas o pior não era isso, o pior era que, deitado na porta, estava o meu corpo, inerte, morto. Só então entendi que aquele era o meu cadáver. Senti um calafrio por todo o meu corpo, ou o que fosse que me envolvia.
E mesmo então, o Robin Williams voltou para o palco e pronunciou o meu nome, enquanto anunciava:
– E agora, o nosso novo sócio do clube dos poetas mortos, vai fazer uma leitura do seu poemário Sombras de ti…
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