A nossa vida é superficial, e este fato revela-se no nosso corpo e na nossa pele a mostrarem as máculas próprias de seres esquecidos por deus. Um deus a pedido, criado desde e para o materialismo, mais uma “instituição” para sustentar as misérias individuais e sociais, um deus que não é caminho para a libertação mas fundamento do cativeiro.
No plano individual, a doença e a tortura são duas caras da mesma moeda, paixão do ser e ação do mundo material ou do injusto poder que nos governa. No social, a pátria, a família e em geral as instituições e outros modelos impostos polo Estado foram criados para manter a frustração permanente do cidadão. O “pai”, também desde que figura instituída, é um referente de frustração íntima que deve ser transmitida para o cidadão permanecer vinculado às rédeas do sistema; como função emotiva e pessoal, é referente castrado e agente castrador que transmite a derrota com uma sua atitude de vencido permanente, aquele que na realidade forneceu uma semente em que só a miséria podia florescer. Produz-se então a vinculação a um lastro emotivo que o sistema pretende fazer perene, e que o poeta, em sua necessidade visionária de construir um mundo possível e assim prover a hipótese certa da utopia, deseja reconduzir (“ser um digno filho”, “compreender por fim / o sentido do poema”). “Pátria” e “pai”, não por acaso da mesma raiz, são versões da mesma farsa.
O poeta deseja transmutar-se ele próprio em vínculo efetivo entre o passado e o futuro. Daí a análise também de seu role como pai. É pai de seus filhos e também, como intelectual, responsável por uma “língua que perece” ou pai de uma pátria que, se algum dia reconhecida, devia é ser ferramenta para a felicidade e a justiça. Neste mundo falsário ele próprio não é capaz de transmitir a língua a uns filhos que são impermeáveis à mais generosa tradição. Portanto, a conclusão como pai e como filho é igualmente dececionante, sendo uma a dolorosa seta que aponta em dous sentidos à vez: “nada a herdar”.
Esta insatisfação, proveniente dos vários planos vitais, dá lugar a poemas que não nascem nem terminam, que não são vários mas um só, porque a Verdade (a substância teórica que resulta de somar todas as verdades) é única e inapreensível, e por isso em todo o tempo procurada. É a Utopia mesma, aquilo que justifica o poema e sua vontade de “dizer a evidência”. Neste sentido, os vários textos deste livro, assim como os vários poemas de qualquer livro, constituem no fundo um “poema único”. Aliás, em concomitâncias evidentes com o poeta Amadeu Baptista, o poema deve “descrever a miséria”, o que torna evidente o compromisso social e a necessidade da denúncia.
Existem, por outro lado, evidências da educação judaico-cristã na referência à dor salvífica e à necessidade da redenção —cfr. também Amadeu Baptista— (“a dor que nos salva”: “quem nos redimirá agora”; “sacrifício”). Vamos, segundo o poeta, para uma morte lenta, burguesa e criminal. Este protesto implícito, auto-flagelante, reclama o nascimento urgente da revolução. Não catalisa a revolução, é evidente, mas fertiliza os campos da mesma. O poeta sente-se burguês desde que passivo demais perante a injustiça, mas o burguês autêntico é complacente e não tem má consciência; a este poeta, ao contrário, dói-lhe beber vinho burguês em cómodas poltronas, e esta ingestão produz no seu íntimo uma incoerência azeda de que nasce uma dor existencial.
Na origem desta dor também está a língua: usar uma língua operária, o galego, mas numa versão erudita e portanto “elitista”, dignifica a língua depauperada mas afasta-a simbolicamente do povo, pois este, como se tratando de uma mãe paupérrima e ignorante, não reconhece o seu filho quando bem vestido e enfeitado para a festa da mão da fina flor linguística internacional.
Os seres humanos somos acossados polos erros e polo mundo que alimentamos com as nossas misérias, e este sentimento de decadência só pode provocar o “desejado final”. Numa certa atitude decadentista o poeta diz “convocar cadáveres em torno do poema”. A exibição do poeta é impudica tanto quanto inevitável e terrífica. A contradição, o ódio, a inveja, e a incoerência pairam em silêncio como uma morte que se veste de guerra surda e diária ou como uma tortura que ninguém reconhece como tal. Mas a luta passiva numa resistência permanente, essa tortura perene, é cansativa. Por isso em Da vida conclusa uma vida semelha querer concluir, e do mesmo modo uma outra –podemos intuir– vai um dia começar.
A verticalidade das cousas é um piar que assenta na presença dos “cadáveres em torno da mesa”, na existência de “ruínas para não viver”. A nossa vida é descrita como a própria de um “funambulista”, quer dizer aquele que procura o equilíbrio, e como a de um “sonâmbulo”, aquele que caminha e permanece adormecido. Mas esta imagem dupla, se se quer negativa de partida, possui uma interpretação mais positiva do que se poda imaginar: um ser que apesar das inúmeras incertezas mantém o equilíbrio e um ser que, sem deixar de sonhar, sempre caminha para a frente. E o que é isto em fim, o início de um manifesto «sonambulista»?
Na segunda parte do poemário ainda há, na linha ideológica dos temas precedentes, um espaço para o amor. Um amor que é descrito principalmente como fato carnal, a transmissão de uma energia que flui através dos corpos e que constitui uma vivência prazenteira e fugaz, algo que neste mundo de falsidades quase deve ser interpretado como um erro do sistema. Daí que o amor se veja permanentemente acossado pola mentira e a nescidade, e que a precedente “perfeita geometria da catástrofe” agora se traduza em “anatomia da perda”, uma experiência que tão só serve para “iluminar o vazio em que nos encontramos” e dar sentido à “debilidade que nos mantém vivos”.
Mais uma vez, Mário Herrero Valeiro defronta-nos com o contraditório. O poeta denuncia a mentira social em que os erros dos homens são pedras pesadas, em que o poema se considera “matéria inerte” ou o próprio ser do poeta figura como “uma falsa lembrança”; mas o amor existe, a vida continua e, embora dolorosamente, as pessoas continuam avançando num equilíbrio custoso sem definitivamente acordar. A mensagem, em fim, é que o equilíbrio existe e que não desistimos dos nossos sonhos. Porque abaixo de qualquer imposição existe um “desejo de arder”, um sentimento que traz à superfície do poema um “grito submergido”, uma vibração que nos lembra que a utopia sempre espera.
Nota: Este livro venceu na terceira edição do Prémio Literário Glória de Sant’ Anna (2015). Dele o nosso colaborador Xosé Lois García dixo: «[…] é um poemário vital no que concorrem vários registros criativos que expõem uma nova ordem tanto na forma como na linguagem poética. […] um autor nascido na Galiza, como Mário Herrero Valeiro, que escreve em português, não deixa de ser um ato de reconhecimento da língua comum que nos assistiu e assiste a galegos e portugueses historicamente. Este autor vem a reconhecer e ampliar o bloco linguístico lusófono que, desde a Galiza, está sendo assumido por diversos escritores galegos. De fato isto é uma realidade que não podemos ignorar».
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