Alguém vem do mar iluminado pelo sal da eternidade diária das ondas. No interior, as portas das cidades erguem-se estreitas. As aldeias vivem agora rodeadas da palavra abandono. Dizes: temos a memória das amoras e das fontes frescas dos sentidos. Dormimos nas casas abandonadas onde se erguem actualmente flores melancólicas. Os sinais da eternidade são já mais visíveis: o pó, os mortos, as teias de aranha. Dizes a chorar: aqui ficava uma casa, ali outra e outra mais além. As casas foram destruídas pela velocidade lenta do tempo. Os rios na infância eram misteriosos. Os sentimentos ardiam velozes nas carícias das mães. Os animais e as estrelas arrefeciam devagar na noite comovida. A secreta aprendizagem da paciência surgia iluminada pelo surpreendente silêncio do mundo. Os corpos dos amantes relampejavam no escuro. O amor vinha na primavera. A minha voz procurava-te para te contar o milagre diário das palavras. Então os teus olhos adquiriam o brilho precioso da pureza. Os sonhos cresciam dentro do alfabeto grandioso da infância. As palavras grandiosamente abertas corriam pelas nossas bocas deslumbradas. Deus aparecia à luz do dia montado num anjo apócrifo. As avós alimentavam-se de rezas, os avôs embebedavam-se e os pais fodiam como loucos pelas searas verdejantes. Agora ouvem-se os gritos mudos dos mortos, a voz submersa do abandono, o passo apressado do silêncio, a alma subterrânea da aldeia. A catástrofe emerge no círculo atento das montanhas nas noites brancas da memória. Dizes: através da indiferença, o esforço do homem tende para a criação imagética dos mortos. Dizes: a beleza não existe. A beleza é pretérito. A beleza é sempre o instante que já passou. Sentimo-nos como os sons interrogativos de um fagote. Agora a morte vive nas aldeias abandonadas. A alma é exterior ao espanto. Aqui a escuridão é viva. E o ruído calamitoso do abandono ouve-se nas galáxias próximas dos teus olhos. São agora outras as fisionomias dos corpos. A inocência atroz do passado é actualmente um sítio imóvel. Dizes gesticulando as palavras: ouves o grito dos mortos? Ao nosso lado a sombra da noite cobre a sombra da própria sombra. Sinto-me a atravessar o inferno.
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