Foi Arga quem caiu na conta:
– Estás a sangrar.
Ao seguir a linha do seu dedo e ver o regueirinho encarnado que me esvarava entre as pernas não tivem medo. Não era esse sangue uma surpresa. O meu corpo tinha mudado muito nas últimas estações. Os meus peitos arredondaram, uma relva escura cobria o meu pube e os cadris eram-me cada dia mais sinuosos. A minha mãe explicara o sentido destas alterações e aconselhara:
– Quando chegar o momento, não te assustes.
Estavamos a a abrandar a quentura da tarde nas poças do regato. Lavei as coxas, deixamos que as nossas peles acabaram de sacudir o frescor das águas remansadas e subimos à aldeia ao encontro do meu pai.
– É hora de ires com a Loba – foi o único que comentou.
A mim a Loba sim me punha medo. O sangue não. Mas a Loba. Vivia separada do resto dos clães, na sua própria aldeia do outro lado dos montes, na banda do mar. A ela eram enviadas todas as raparigas quando o primeiro mênstruo. E as meninhas voltavam transformadas. Olhavam para nós, as que nunca sangráramos, com ares superiores, como donas de saberes a nós vedados.
Viravam remiradas e altiveiras, todo por causa dessa mulher. E punha-me medo que a mim também me figesse outra com as suas mágias e apócemas.
O sonho dessa noite foi diferente. Já não só corria por um trilho estreito ao bordo dum caborco. Agora perseguia-me uma manda de lobos. A sua raiva ronçava as minhas calcanheiras e eu não via o fim do caminho. Sempre havia uma volta no fundo e chegando a ela outra nova volta. E foi então que eu percebim humidade nos pés e reparei em que corria polo leito dum regueiro, e os lobos atrás de mim, sempre. E corria e corria e sentia a água rubir-me como hera e notava como passava das canelas e seguia até os gionlhos… mas só a mim. Aos lobos não lhes afectava a água. Eles não tinham problema para me seguir. E de súbito caim em fervença e não sei se preferia afogar ou ser comesta de alimárias. E conseguim abrir os olhos numa água mesta e escura. Não via nada, e faltava o ar. Espernejei cara a superfície e outra vez estava longe, tão longe. Quando porfim tirei fora a cabeça vim-me numa poça enorme, nadando em sangue encarnado que nascia de mim. E os lobos aguardavam na beira. Com as fauces dispostas. Espertei. Eu ainda era nova, e não atinei a ler nos meus sonhos o pesadelo por vir.
Com a estrela do luzeiro ainda alta, meu pai e mais eu partimos ao encontro da Loba. Essas viagens entre comarcas, antes agradecidas, voltaram algo perigosas nos últimos tempos. Diziam que uns bárbaros vinham do sul atacando lugares e vieiros. Caminhamos desde o mencer buscando o Alto dos Passaros. Figemos noite no caminho. Eu nunca vira o mar. E surprendeu-me numa volta do carreiro como um céu descambado no chão. Um torques de areia separava o manto azul da terra. E no norte chocava nuvens um imenso Pindo que desde a nossa aldeia não semelhava assim tão crescido. Nunca eu pensara que o mundo pudesse ser tão extraordinário. Meu pai mostrou-me, desde as alturas, o lugar da Loba, mas ainda nos levou várias horas chegar a ele.
Às portas da aldeia saiu uma mulher. Era alta, majestosa, ou isso me pareceu a mim vendo-a do fundo das escadas. Portava como capa uma longa melena preta e lisa tal cortiça de bidueiro. Na mão segurava um pente de ouro. Eu também nunca antes vira ouro em pente. Só nos guerreiros torques.
– Loba, sou Obre, da casa dos Céramos. A minha filha sangra por vez primeira e pido-che que a atendas.
– Qual é o teu nome, meninha? – a Loba dirigiu-se a mim.
– Sou Broa, filha de Cervanha e Obre.
– Entra, Broa. Não temas. E ti, Obre, volta pola tua filha quando os cornos da lua dêm ao leste.
A olhada de meu pai indicou-me que devia obedecer. Subim a escadaria e seguim a mulher portas adentro. Desde o alto vim meu pai desfazer o caminho andado, seguindo o curso do rio até chegar ao vieiro da Portela do Além, aquela pola que vinhemos a este além no que eu agora estava.
– Por que não te acompanhou tua mãe? – a pergunta da Loba fixo-me voltar à realidade.
– Minha mãe morreu há quatro luas. A minha avó não pode caminhar mais dum dia. Não há mais mulheres na minha casa.
– Ló terei que ser eu a explicar-cho todo.
E foi assim que soubem.
Quando entramos na aldeia uma rapariga veu ao nosso encontro. Era-me desconhecida. Juntas acompanhárom-me à banda de leste. Havia lá três casotas. À porta duma delas outra rapaza moia paínço. Também me era desconhecida. Outra passou levando lenha ao lombo. Todas eram desconhecidas para mim.
– Onde estão os homens? – perguntei–. Não é tempo de caçaria.
– Não há homens neste lugar – respostou a Loba-. É o primeiro que deves saber. Esta é a aldeia das Lobas. Cá só as mulheres podemos morar. Os homens só podem permanecer entre nós em perigo de morte ou no abatimento da agonia, mas sempre com a minha permissão. Lembra-o no futuro: este pode ser o teu refúgio, embora sempre vaias encontrar quem queira que o vejas como prisão. Quilma, explica-lhe. E Quilma, a outra rapariga, convidou-me com um ligeiro aceno, a entrar numa das casotas. Era como qualquer das nossas: muros em pedra, um lar para quecer e cozinhar, coberta de colmo.
– Esta será a tua casa entanto estés com nós. Se chegar alguma meninha mais para o rito, acompanhará-te. Mas, por agora, és ti sozinha.
Quilma era mais velha ca mim. Falava-me sempre sorrindo, e ainda eram mais rideiros os seus olhos. Saltitavam em dança acompanhando as suas palavras.
– És a sua ajudante?
– Cá todas somos ajudantas. As que vivemos na aldeia partilhamos tarefas e trabalhos.
Atendo-te eu como pode atender-te outra.
– A Loba também?
– Ela ajuda mais que ninguém. A Loba é a ama da vida e da morte. É cantora de quem chega e quem se ausenta. Mostra o caminho a quem nasce e a quem perece.
– Então não sei por que estou eu aqui. Já nasci e não estou doente. A minha mãe tivo tempo a contar-me que o sangue luar não é doença.
– Não é doença, é certo. Mas há em ti uma mudança. O sangue anuncia que o teu corpo está preparado para trazer crianças. A Loba deve asegurar que ti também estás pronta e proteger-te se não o estás.
– E como vai saber?
– O importante, minha Broa, é que o saibas ti.
Quilma deixou-me descansar uns tempos. Coloquei a minha esteira no chão e não sei nem quanto dormim. Quando despertei, acabava o dia.
Saim ao relento da escuridade e não vim ninguém. Contudo, uns gemidos laiavam na casota do lado. Assomei ao seu interior e acertei a identificar uma velha adoecida deitada no chão, com a cabeça a descansar no colo da Loba. Ela falava-lhe maininho mentres lhe colocava panos húmidos na testa. chegou, é a hora da dança. Não entendia o seu falar. chegou, chegou a hora. Parecia rezo ou canto hínico. vém, traz cá a ossamenta. Quem sabe se mágias de bruxa.
– Entra, Broa, ajuda-me – a Loba voltou trazer-me ao mundo com o seu chamado-. Mantém o lume e não deixes que arrefrie essa água. Grova está a ponto de deixar-nos – sussurou-. Temos que lhe aliviar a dor para ela poder marchar tranquila. Nessa água fervem raízes de erva dos gatos e caules de uva de cão. Isso adormece o seu corpo e destesará as suas febras. Escuita o meu canto e aprende.
– E o meu sangue pode aguardar…
– És uma meninha bem espelida.
Assim, a minha primeira velada na aldeia das Lobas passei-na acompanhada da morte, que rondava as casotas. Mas é certo, estando com a Loba, não tive medo. A morte entrou, apanhou o que era seu e foi-se embora. Eu puidem saudá-la sem temor. Teria gostado de que a Loba estivesse junto a minha mãe quando lhe chegou a hora. Porém a mãe morreu sozinha. Muitas noites ainda a choro. Agora sei que é porque lhe faltou o canto: Traz cá essa ossamenta, esse escalavro que anda, traz cá, eu sou a compostora.
Quilma despertou-me com o sol já no alto. A fame que eu notei nas entranhas era fera. Mas já aguardava por mim um pote com umas boas papas e o sorriso cúmplice da minha guia. Fomos até o rio para eu me lavar bem. Quilma perguntou-me se sentia alguma dor ou mal-estar. Perante a minha estranheza, explicou-me que isso podia acontecer. Cada corpo seique é diferente, e no caminho ao regato foi-me mostrando as ervas que calmavam cada incomodidade e explicou-me as maneiras de prepará-las, se infusões de flores, se emplastos de folhas, se raízes fervidas…
– Escuitarás-nos muitas vezes, porque essa é a melhor maneira de ires lembrando. Estes dias tens de pór atenção e cautela em todos os teus sentidos para aproveitar bem quanto che aprendamos.
Meu dito meu feito. À tardinha, a Loba chamou-me ao seu carão.
–Esta é a noite do teu rito. Acompanha-me.
E seguim os seus passos fora da aldeia, polo caminho que figem com o pai. Andamos calmas e, a cada pouco, a Loba parava para me mostrar uma nova mencinha.
– Olha -e assinalava uma planta de abrochos amarelos-, o extracto do casamelo calma a dor menstrual, se algum dia a tiveres.
Na Portela do Além seguimos por um carreiro diferente ao que leva à minha comarca. O caminho beireava a aba do monte a meia altura. O nosso objectivo era uma penedia que brilhava ao longe vista da aldeia.
–Pensava que o rito era comunal.
– Não este. Fazemos festa quando chega a estação das flores. Aí vos juntades todas as meninas menstruantes desde o último encontro. E celebramos. Hoje estamos sozinhas tu e mais eu. É tempo para ti em exclussivo.
Ao chegarmos a uma zona de arvoredo que nem era gesta nem era codeso, deixamos o caminho para seguir um carroucho animal. O roteiro noturno dum porco-bravo ou um raposo. Submergidas entre silveiras e espessura verde demos chegado a uma chaira de pedras, dónde podia ser vista a aldeia e, além dela, a praia e o mar, com a ponta do fim do mundo no norde. O mar que eu vira por primeira vez havia uma eternidade de dous dias.
Da sacola que levava ao lombo, a Loba tirou um cinzel de ferro.
– Temos que fazer a tua covinha antes de cair a noite.
Foi aí que pugem atenção. A lage sobre a que pousavamos estava cheia de pocinhas. Eu diria que eram feitas pola chuva, mais caim na conta de que todas circundavam uns aneis gravados.
– Este é o meu almanaque -contou mentres trabalhava a pedra-. Cada anel é uma lua. E cada covinha é a marca duma mulher que devolve à terra a sua seiva.
– São poucas covas; portanto, são poucas meninhas, não?–
São as minhas meninhas. Olha se vés algo naquela lage dali – e assinalou-me uma pedra mais a sul.
Com a luz do pór-do-sol observei o com. Para olhos ausentes nada tinha de particular, mas para a olhada curiosa que em mim estava a nascer aparecérom mesas e esteiras gravadas, quadradinhos que eu seguim com o tento das mãos, e que me pareceu davam forma a um corpo de mulher.
– Essa é a lage doutra Loba que foi antes que mim. Cada uma de nós escolhe um lugar para fazer os ritos. Eu quigem ficar acarão da minha mestra.
Com o sol posto e a lua assomando por entre os cúmios, chegou a hora.
– É o mundo um círculo de fios e tramas que se enlaçam. Nada daquilo que fazemos é insignificante. A terra deu-che alimento e abrigo todas estas estações. Não che faltárom abelotas nem fabas nem leite. Pudeches tecer roupas e da terra saírom as pedras que murárom o teu lar. Sempre é tempo de agradecer e voltar parte do ganho. Somos terra. Somos poeira. Somos argila modelada por mãos invisíveis. Quando naceste tua mãe voltou à terra parte do emprestado: a placenta que te alimentou no seu ventre foi soterrada ao pé destas lages, para servir de adubo a quem nos serve. Agora, a tua cova é o teu sangue. E com ele hás de alimentá-la. Enfeita a pedra que desde já é o teu recanto de oferenda. Devolve-lhe a cor à rocha. Vira encarnada a paisagem. Liga de sangue. Aliança com o mundo que te envolve.
E figem o que a Loba mandou. E introduzim os dedos dentro de mim e com a minha seiva decorei a covinha que ela cinzelara acarão das covinhas doutras mulheres. E mentres, ela seguia com o seu discurso:
– Não admitas que censurem o teu cheiro ou os humores que desprende o teu corpo. Nunca consintas que te chamem de suja ou impura por sangrares. Não deixes que te desprezem por isso. Se um homem quer fechar-te na casa quando o mênstruo é sinal de que esse homem não é bom para ti. Se na tua casa decidissem trancar-te em casota à parte nesses dias, é hora de mudares de família. Lembra que sempre tens a nossa aldeia disposta a acolher-te.
– Loba, na minha casa nunca disseram tais cousas – eu estava verdadeiramente chocada polas suas palavras.
– Ai Broa, ti não conheces mundo. Se ainda acabas de ver o oceano por vez primeira… Já sei que na tua casa não pensam dessa maneira. Eu conheci tua mãe e sei que ela escolheu o homem certo. Mas não todos os clães são assim. Mas ao contrário…
NOTA: a fotografia da autora provém do seu espaço na AELG.
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