E sentamos as duas a rever as sombras do luar que descobriam e toldavam, ora sim ora não, na aba do monte e nas águas do mar.
– A aldeia das Lobas foi também dos lobos. Levava por nome Malhou. Mas em tempos, dizem, decidiram mudar-se para Minharços, onde estavam mais perto do mar e dos povos que de sul e norte vinham mercadejar connosco. Dizem também que uma peste assolou olugar e só puido fugir dele uma família, instalada em Minharços. Ou que a terra se fijo miserável e pouca para tanta gente que nascia. O caso é que a aldeia, com os seus muros e valados ficou sozinha no meio do val. Um dia alguém viu fume chegado do altinho de Malhou. E quando um grupo de homens se aparelhava para ir comprovar que não ardia o monte, chegárom dous rapazinhos falando duma mulher alta, que lhes deu conversa entanto penteava a sua melena azeviche com pente de ouro e que por eles mandava recado a Minharços pedindo licença para ficar na aldeia abandonada. Em troca, oferecia-se a antender partos e mortes.
– Eras ti…
– Era outra Loba que me precedeu. Nunca a aldeia fica sem Loba. Quando uma parte, deixa o seu lugar a outra. Haverá quem che diga que carrego ao lombo muitas idades, mas não há rigor nessas afirmações. Eu sou a que sou, embora seja verdade que em mim repousa o saber e o alento das lobas que antes foram.
– E àquela loba deixárom-na ficar…
– Deixárom. E passárom tempos e uma tarde acolheu a uma rapariga que vinha da banda do norte, da terra dos Nérios. E mais tarde acolheu outra. E outra. E nasceu a aldeia das Lobas.
– E nunca vinhérom os homens, os pães, os irmãos, buscar as mulheres que aqui se refugiavam?
– Por vezes temos algum conflito. Mas lembra. Temos poder. Em todas as aldeias da redonda dorme alguém a quem a Loba sandou, a quem a Loba alentou, a quem a Loba aconselhou.
É certo que sempre há quem veja o mal nos nossos costumes, só por serem diferentes, mas sempre haverá alguém perto que nos defenda. Ou alguém que nos tema.
– É certo. A mim punhas-me medo.
– Já não cho ponho? – riu a Loba.
– Agora só quero saber mais – e ousei perguntar-. Minha mãe era das Lobas?
– Tua mãe partilhava os nossos ritos; visitava-nos quando era o tempo, decorou a sua cova e nasceu-te cá. Ela gostava da sua família e nunca quis apartar-se dela. Preferiu contribuir a que o teu clão percebesse a importância de sermos bem tratadas.
– Porém, morreu sem a tua ajuda.
– Conta como aconteceu. Ignorava o seu desaparecimento até ti chegares.
– Nem sabemos bem. Foi ela com as ovelhas ao monte; gostava de ir ela de quando em vez e descansar de nós, dizia. Deveu esvarar e cair na penedia porque não voltou. Na alvorada meu pai saiu na sua busca e encontrou-na ao pé das pedras Carneiras. Tinha uma ferida na testa. Eu ajudei nos ritos da morte. Lavei-na e pugem-lhe a mortalha. Era a que tinhamos tecida para a minha avó, mas a avó segue a fiar e a mamá já não está –aínda que não queria, não puidem evitar que as báguas começaram a rodar-. Eu sempreimagino que lhe deu tempo a ver a lua no alto antes de fechar os olhos. Ela gostava muito da lua.
– Não temos poder para dominar a vida e a morte. Não podemos saber nem quando nem como chegarám. Só podemos aprender a recebê-las com tranquilidade. A tua mãe sabia. Pensa isso. A tua mãe sabia.
Passamos a noite nas lages. E reparei em que os meus sonhos principiavam a calmar. Desta vez rubia penedos guiada pola manda de lobos, que me marcavam os passos entre as pedras, como as cabrinhas de monte. No cúmio aguardava uma loba enorme, com dous lobachos colgados dos seus tetos. As criancinhas eram repoludas e bufavam contentes. A loba olhava a lua e ouveava, mais o ouveio eu sentia-o como canto de benvida. Eu só tinha ânsia por chegar ao cimo e ouvear com ela.
Com as primeiras luzes do dia voltamos à aldeia. Deviamos regressar cedo, porque havia que despedir a Grova. Quando chegamos, as mulheres tinham preparada a defuntinha. Como no nosso clão, lavaram-na e enfaixaram-na numa mortalha de linho cru. Estavam todas reunidas ao pé da cadeira da Loba, umas pedras desde as que ela moderava sempre as assembleias, segundo me explicou Quilma. A Loba falou, e partindo das cantarelas elegíacas que eu escuitei adicadas a Cervanha, louvou a vida de Grova. Quando deu por acabado o canto, quatro mulheres levárom a morta em ombros e assim a baixárom pola escadaria, seguindo os passos marcados pola Loba. Com canções de despedida, acompanhamo-la fora dos muros da aldeia. Lá, numa esplanada, prepararam um monte de lenha, e rompia a arder uma fogueira. Chorei quando depositamos o corpo no lume, porque lembrei a incineração da minha mãe. O canto das lobas, os seus uivos, não abrandavam o meu desalento. Para me aliviar, Quilma prometeu:
– Amanhá levo-te a ver o mar.
Todo o dia ardeu Grova, até ficar terra. Até ficar poeira. Até ficar argila modelada por mãos invisíveis.
Essa noite voltei sonhar. Novamente os lobos marcavam o caminho a seguir para eu fugir do incêndio que assolava tudo. Bradavam os animais e eu seguia o seu som. E cheguei à praia e a areia era poeira grisonha e o mar encarnado como sangue. Porém não era sangue, mais água a espelhar o lume que se estendia por toda a volta. E do lume surgiu a loba, como alimentada polas lapas, mas sem os seus lobetos. E com o focinho empurrou-me à água e conseguiu de mim que botasse a nadar. Espertei.
Na manhá seguinte, depois de preparar-nos, depositamos as cinzas de Grova numa furna de argila. Estava decorada com uma cenefa semelhante aos desenhos das lages que eu visitei com a Loba. Outra vez foi organizada a comitiva de acompanhamento. Agora era a mesma Loba quem portava a furna. Caminhamos um nada cara ao Sul, até umas penedas perto da aldeia.
– É a Pala das Lobas -sussurrou-me Quilma-. Aqui soterramos a todas as mulheres da nossa família.
Era bom sítio para voltar a ser terra. Duas penedas faziam cova que guardava dos ventos e da chuva. E desde o agocho os espíritos podiam albiscar a vida na aldeia. O fumo dos lares. O som dos moínhos a moer. O canto das mulheres a trabalhar. Bom lugar para voltar a ser poeira.
E de volta aos lares e moínhos, cansas de lamentos e coitas, demos com o sobressalto.
Um grupo de homens, apetrechados para a guerra, aguardava por nós aos pés da escadaria. No meio deles reconhecim a meu pai, Obre, da casa dos Céramos. De entre o bando de mulheres saiu aquela que as representava, vestida para o luito, e com a suas escuras guedelhas a reflectir o sol.
– Sou Loba, ama da vida e ama da morte. Em que vos podo ajudar?
– Loba, sou Ámio, da casa dos Cernegos. Acompanham-me representantes dos clães dos Céramos, dos Minharços, dos Bertonias, dos Larangas, dos Marantes e dos Brialhos. Sete clães que che pedimos acolhimento, para nós e as nossas famílias, na tua aldeia.
– Na aldeia das Lobas só homens em perigo de morte ou no abatimento da agonia podem entrar. Bem o sabedes.
– Em perigo de morte estamos todos, e vós também, e no abatimento da agonia está o nosso mundo. Desde o Sul chegam novas pavorosas. Grandes exércitos de além mar marcham sobre aldeias e lugares assassinando pessoas e assolando terras daqueles clães que não aceitam a rendição ao seu poder. Avançam por mar até o fundo das rias e seguem depois pola terra média. As nossas aldeias ficam no seu caminho. A vossa está protegida polos montes. Desde o alto da Vigia podemos controlar o mar. Pedimos-te que nos acolhas. Exigimos que nos acolhas!
– Se o exigides já nom é acolhimento, mas invasão. Fazedes-nos às Lobas aquilo que temedes dos estrangeiros.
– Loba, atende. O perigo é grande -falou meu pai-. Não estaria eu aqui de não temer verdadeiramente polo futuro da minha filha, Broa, que nas tuas mãos tenho confiada. Os estrangeiros avançam e abatem a quem não se submete. Se nos acolhes teremos tempo de artelhar uma estratégia de luita, defensa ou negociação que dê esperanças aos nossos filhos, à minha filha. Tempo haverá depois de voltar às lobas aquilo que das lobas é. Mas é provável que sem a vossa ajuda, numa estação, duas ao muito, passemos a ser, nós e vós, um outro povo perdido na memória de ninguém.
– Entrade à aldeia. No Trono da Rainha Loba falaremos.
E todas e todos seguimos à Loba até a sua cadeira, agora virada trono. Lá seguiu o pleito. Ámio mantinha um falar atropelado e exigente. Obre, meu amado pai, buscava atenuar com as suas, as palavras do outro emissário. A Loba, para a minha surpresa, deu quenda às mulheres daaldeia. Falou Quilma em contra do abrigo.
– Vai ser a perda das lobas. Passaremos a ser cadelinhas a comer o restobalho destes guerreiros.
Falou Laínha em favor dos homens.
– Não deixam de ser das nossas famílias. São elas as que estám em perigo. Temos que unir as nossas forças, lobas e lobos a criar uma grande manada que defenda o seu território.
Eu não sabia bem que opinar. O meu pai era para mim da mais grande confiança. Sabia que passado o perigo, devolveria o seu lugar às lobas. Mas outros dos que o acompanhavam causavam-me apreensão. Esse Ámio, tão arrogante. Ou Bermo, da minha aldeia, um moço sempre desdenhoso comigo.
– Esta terra é da casa dos Minharços – quem falava era Sanço-. Foi-che concedido habitá-la, mas não é da tua propriedade. Está na nossa mão anular o pacto. O que che propomos é o que segue: deixas que nos instalemos na vossa aldeia nestes tempos de luita; quando o perigo passe, voltaremos cada qual à nossa comarca e reconheceremos por sempre a tua autoridade sobre este lugar.
– Que assim seja! – e, depois dum calculado silêncio, a Loba acrescentou-. E que as vossas cabeças virem pedra, e sejam alicerce do meu trono, de não dardes cumprimento a este acordo.
E entanto uns homens voltárom às aldeias da banda do Aquém que para mim já era Além, uma guarnição deles ficou com nós para preparar a chegada das famílias. Havia que edificar mais casotas, reforçar os muros exteriores, apanhar provisões, organizar a vela no Monte da Vigia… Forom dias longos e cansos, de muito trabalho e ambiente toldado.
E os meus sonhos voltárom a ser escuros. Agora eu corria com a manda de lobos, dacavalo da loba mais grande. O trilho estreito ao bordo dum caborco era o mesmo de sempre, mas os lobos passavam, comigo, a ser os perseguidos. Uma piara de porcos bravos, crescidos como ursos, ferozes como donicelas, dirigiam a sua raiva aos nossos calcanhares. Quando num tris estavam de dar-nos alcanço, rebentárom em lume. Era cada porco uma bóla de lapas alaranjadas a prender em cada gesta, em cada codeso, em cada rebento de amieiro. Houvemos de parar, afogadas polo fume e a calor. Labaredas como línguas afiadas formavam um círculo em volta da manda, que desaparecera. Sem saber como, ficara eu sozinha. Espertei.
Todas as tardes desses dias infaustos, achegava-me até as portas da aldeia, por ver de enxergar a minha família baixando a Portela do Além e calmando a minha ansiedade. Num desses serões, aproveitado para apanhar lenha, reparei no Bermo, que estava a trabalhar pedra ao pé da escadaria. Aprimorava o cinzel dum bloco rochoso. Esculpira a cachola dum corricho.
– Que vas fazer com ela?
– Vai ficar nas portas da aldeia.
Olhei estranhada. Ele riu.
– Sim, nas portas da aldeia. Indicará a viajeiros e caminhantes que Malhou já nunca será fogar de lobas -e erguendo o porco bem no alto, bradou violentamente ao tempo que dançava-. Lobas vencidas por javalis!! Lobas vencidas por javalis!!
Lobas vencidas por javalis… Acaecesse o que acontecesse com os invasores, as estrangeiras sempre seríamos nós. Isso falava a noite nos meus pesadelos.
Atirei a lenha apanhada, corrim quanto as pernas me davam, acovilhei-me na Pala das Lobas e lá chorei. Chorei por todo o aprendido. Por todo o perdido.
NOTA: a fotografia da autora provém do seu espaço na AELG.
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