Nota preliminar: A primeira versão deste texto (prépublicada no dia 8 de agosto) foi revista agora pela autora, após a palestra da mesma na Universidade Eduardo Mondlan. Faculdade de Letras e Ciências Sociais. Departamento de Linguística e Literatura.
Palavra Comum
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Escolhi o tema “o que vestem as palavras”, não exactamente para falar sobre ele mas para criar sombras à volta do assunto sobre a linguagem no texto poético.
Vestir é a palavra-chave. Iniciemos pelos conceitos ou definições: verbo transitivo; vestir quer dizer: pôr no corpo uma peça de roupa, pôr no corpo de outrem a roupa que deve cobrir, ajudar alguém a vestir-se, dar roupa a, cobrir, adornar, revestir; usar como vestuário, trazer ordinariamente, fazer roupa para, no sentido figurado vestir quer dizer: tingir, adornar, cobrir, disfarçar, dar realce a, embelecer, assumir, forrar, atapetar, alcatifar, forrar.
O lado (o)culto da palavra
É através da palavra que vinculamos o pensamento. Reparem escrita ou não escrita ela sempre suscita uma desordem natural. Aberta a espaços, vivências, sons, tons, interpretações, vazios etc. A palavra é um assunto complexo visto do ponto de vista literário, eu diria até que mesmo na comunicação casual.
Os que querem observar profundamente a palavra podem reparar que ela passa do objecto físico para o objecto espiritual: a metamorfose, o desconhecido que ela emana. O espírito humano reage de várias formas a várias situações, quando usamos a palavra usamos igualmente tal força.
As palavras representam o pensamento e a força do pensamento.
Será necessário fazer um estudo sobre a palavra e o homem. Explicar por quê certas palavras têm uma densidade característica o que alguns chamam de palavra poética, e outras não.
A mística da palavra: o deus animal e o deus vegetal, o espírito, esses cruzamentos que fazem o homem denso.
O que vestem as palavras. Relembrando o conceito vestir que é trajar, cobrir. A ideia que se tem é de que as palavras são cobertas por alguma coisa, uma espécie de invólucro. É como se não tivessem vida ou uma vida condicionada.
Linguagem, um instrumento de possibilidades
Na poética, usa-se a linguagem como forma de encontrar luzes puras que brotam do pensamento intuitivo, refiro-me a corrente surrealista esta que advoga a ideia do corte da retina, expurgar tudo que nos foi dado por meio de ensinamento sistemático e convivência social, para ver. Abrir os olhos e ver, tal como sucede com as crianças a magia de ver as coisas pela primeira vez.
Ainda na ideia dos surrealistas o corte do olho, a visão nova sobre o mundo e a sensação, pode automaticamente criar brechas para o experimento de novas línguas, vamos fazer alusão aqui a escrita automática – regida por impulsos animais e carnais. Mas o que isto teria a ver com o espírito? Faltava em nós a descoberta quando fomos ensinados a viver. E até então como essas crianças corremos atrás de nós mesmos.
Vestir traduz-se em (des)cobrir.
As palavras escondem alguma coisa, o exemplo disto é o simbolismo; quando nos referimos ao símbolo: chamamos a representação de algo que fica acabado no próprio misticismo, mistério ou metafísica.
Quando a nudez se torna num vestido
Observemos este pensamento do poeta moçambicano Eduardo White: “Lembro-te: alguém no amor precisa de estar nu para mostrar ao outro que está demasiado vestido. ”
Estar nu significa encontrar-se livre de impurezas ou coisas que não dizem respeito à nossa natureza.
Esta nudez é um vestido. Não podia haver um cobrimento maior que o do vestido bastar-se por si só.
Os objectos e a transmutação da palavra
A palavra pedra leva-nos a realidade pedra. Alguém diz pedra e a nossa mente projecta a imagem. O que diz pedra escondido do sentimento pedra não envia a pedra. O que ouve pedra longe da pedra não vê a pedra.
A palavra pode ser dita mas nunca pura quando disfarçada. Não se poderá mentir sobre o sentimento emanado.
(Re)visão
É uma questão controversa a revisão textual. Eu aparto-me. Nada contra, mesmo porque trabalhei com vários revisores. Revisar poemas é um desafio, acho que só um poeta para ler poemas de um outro poeta. Porque o texto é mais que uma palavra, ele tem uma energia que não se segura na técnica nem na gramática. Mesmo a revisão feita por um outro poeta não será apenas uma revisão, mas uma tradução, um alargamento do que se foi lido. Um poema sempre deixa estilhaços para quem o lê.
A palavra e o poder da criação
No primeiro livro da Bíblia Sagrada Gênesis que conta a criação do céu e a da terra e de tudo o que neles se contém, o livro dos inícios, convoca-nos à criação primeira.
“E disse Deus: haja luz e houve luz .” – Gênesis 1:3
Deus disse a palavra e as coisas se criaram.
Uma outra ilustração, passo a ler o excerto retirado do livro “Os paraísos artificiais” de Charles Baudelaire ainda sobre a criação:
“ As crianças são, em geral, dotadas da singular faculdade de distinguir, ou antes, de criar, sobre a tela fecunda das trevas todo um mundo de visões fantásticas. Em algumas, essas faculdades agem por vezes sem dependência da vontade. Mas outras têm a capacidade de evocá-las ou de mandá-las embora conforme a vontade. Por um caso semelhante, nosso narrador descobriu que se tornava outra vez criança.”
O que é se tornar outra vez criança? Voltar à infância, nascer de novo, retornar ao mundo da criação,
da capacidade de intuir e aprender a entrega. O poeta anda no ritmo da infância. O poeta é uma criança que acorda de vez em quando para a vida adulta no inesperado poema que é a vida.
Quem escreve padece de infâncias. A escrita é sempre uma grande tentativa, de nós mais do que dela. Falta-me a chegada, quanto mais exercito a escrita. Falta-me a descoberta. Faltam-me os espelhos.
A arte é uma possibilidade, e a vida a maior das possibilidades. Quem para saber disto senão a magnífica criança?
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