Tem existido, sobretudo entre alguma crítica e ensaística literária, um certo propósito em esbater as fronteiras entre a poesia e a filosofia, o que na minha opinião é um erro, porque enquanto a essência do poema não é ofertada pelo que enuncia sobre alguma coisa (a função do poema não é falar sobre alguma coisa), a essência do discurso filosófico está no que diz sobre as coisas, mesmo que essa coisa seja o próprio corpo.
Platão outorgava ao rapsodo (o intérprete da poesia homérica) uma condição simultânea, de crítica e elogio. De elogio, pois que o rapsodo deverá ser considerado alguém especial, imbuído por uma força arrebatadora que o conduz à elevação imprescindível à actividade poético-interpretativa. De crítica, na medida em que a sua acepção explicativa do verso (a sua dialégesthai) não observa as regras demonstráveis da dialéctica.
Perante isto, deparamo-nos com um texto poético, “O Sentido do Infinito” (Editora Urutau), escrito por um poeta, Manuel Miragaia, que também é Filósofo, e onde todas estas imanências e dialécticas entre a poesia e a filosofia estão por demais vincadas e entrelaçadas.
No princípio era o Verbo, diz-nos a abertura do Evangelho de João sobre a criação do universo. E é sobre essa criação (na permanente dialéctica e confronto, olhos nos olhos) sobre esse Cosmos, não o bíblico, mas o poético e o filosófico, que Manuel Miragaia se expõe, inteiro e sem medo, dos seus medos: um mergulho arriscado sobre esse tema universal e primário da morte e, portanto, da existência, olhada no entanto numa perspectiva esperançosa da palavra.
O poeta pensa nestes poemas (sobretudo em “Génese e Apocalipse”) a dialéctica poética e filosófica, quer com a vida, quer entre si. Como ele refere no Prefácio, ambicionou (ainda e sobretudo em “Génese e Apocalipse”) elaborar “uma espécie de índice ou resumo poético da vida: a dor, a alegria, o amor”, o medo, a dúvida, a esperança. Veja-se o primeiro poema em antítese com o final do ultimo poema, desta 1º parte, “Génese e Apocalipse”): “Vieste / quando o lume do sol se apaga / nas distantes águas do oceano, / cobrindo-as de ocre, / derramando cores, / enchendo o vento da tarde / dos seus vermelhos vapores / e do negro pesado da sua cinza”; e “o escultor da vida / que tinha todo o tempo, / começaria a tentar realizar / talhas de glória da matéria, / acrescentando a sua beleza / e o seu nível de perfeição. / Do seu trabalho artístico sairiam, / para serem postos no chão do atelier, / novos sonhos e novas esperanças.”
Estará o poeta a falar do divino, de si, ou no fundo do seu ser, da POESIA, em sua permanente dialéctica com a Filosofia, em dialéctica com a vida, e a esperança nessa mesma vida, nesse mesmo Cosmos, nessa mesma criação. É o próprio poeta que afirma que “quando a morte e a vida vão unidas, quando são duas caras da mesma moeda (como a poesia e a filosofia), e quando é necessária para entender a vida e o seu sentido infinito”. Refere ainda em toda a sua crença e perseverança, que “Acredito e tenho fé e esperança, também científica, de que os ciclos da vida nem cessaram nem cessarão”, pois “A alma finita sobrevivia sempre / como parte da alma infinita, / e no sentimento e na saudade dos outros.”
Novalis escreveu que “quanto mais poético mais real”, e Celan, que “só mãos verdadeiras podem escrever poesia verdadeira”, pois a poesia é um trilho de verdade infinita, só ela poderá ser a reminiscência mágica que se inicia quando se enceta o olhar inaugural do mundo em sua luz primordial.
E se, como afirma Aristóteles, “poesia é mais profunda e mais filosófica que a história”, ou ainda, como afirma T. S. Eliot, de que “toda verdadeira poesia é uma visão de mundo”, então, esta poesia de Manuel Miragaia é de forma expressa e consciente, uma poesia de verdade. Uma poesia onde o poeta impregnado do encantamento do verso, associado à razão da filosofia, inicia e/ou reinicia um olhar outro, um olhar sempre inaugural do mundo, e que nessa eterna e terrífica dialéctica “morte-vida-morte”, a palavra é o sinónimo absoluto e “o sentido do infinito” da crença e da esperança neste presente que é imediatamente futuro. A poesia como uma filosofia de fiúza na felicidade do verbo, numa permanente demanda de alteridade, pois a poesia não se entrega a quem a define. Para Manuel Miragaia, o verso é sempre mais do que um verso: é uma poética, uma ideia de crença poética!
Daí que, como canta precisamente no poema “A esperança da alteridade”: “Em vez de falar e pedir-lhe ao além, / viverei e desfrutarei a vida que me tocou. / Em vez de acreditar, sentirei na pele. / Não tenho medo, senão desejos de amor. / A morte é o final desta vida, / mas não é o que vem após a morte. / E saberei sair da totalidade do eu, / abrindo-me à alteridade, / para de vez alcançar a esperança”.
A poesia é pois para Manuel Miragaia, um escudo incandescente carregado de futuro, uma espécie de regresso a casa, a esse olhar (re)inaugural, o Verbo, “no ápice da energia cósmica / que é a fonte criadora da vida /// como quando o sentimento oceânico / alcança a minha consciência”, afirma ele no final do poema final deste livro.
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João Rasteiro, nascido em Ameal (Coimbra) é um reconhecido poeta e ensaísta. É Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra. Vive em Coimbra e trabalha na Casa da Escrita, pertencente à Câmara Municipal Coimbra. Poemas seus foram traduzidos para o inglês, francês, italiano, castelhano, catalão, holandês, checo, japonês, finlandês, húngaro, ocitano e persa. Integra muitas antologias da poesia portuguesa contemporânea. Participa em inúmeros festivais literários tanto em Portugal como noutros países. Tem uma relevante obra poética publicada. Estes são alguns dos seus livros: “A Respiração das Vértebras” (2001), “Pedro e Inês ou As Madrugadas esculpidas” (2009), “A Divina Pestilência” (2011), “A rosa is a rosa is a rose et coetera” (2018). “Levedura”, publicado por Edições Sem Nome, em 2019, é o seu último livro.
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