Chegou a mim, finalmente, um documento há muito procurado. Trata-se de uma entrevista em programa da RTP a Alfredo Guisado, na altura o único dos órficos dentre os vivos. Na Lisboa de fevereiro de 1973.
Apesar de ter notícias vagas da existência de uma entrevista televisiva, desconhecia por completo o teor da mesma. Até, se mal não lembro, situava-a no pós-25 de abril e de conteúdo político…
O documento em si pouco ou nada acrescenta ao que já sabemos sobre o Grupo de Orpheu, Alfredo Guisado ou Fernando Pessoa. No entanto, não deixa de ser um testemunho significativo e até, para quem tem dedicado algum tempo a Alfredo Guisado, aliciante. Do autor apenas tinha algumas fotografias publicadas em revistas e jornais e também várias que, como nesta ocasião, me tinha enviado amavelmente o seu sobrinho-neto Miguel Gonçalo Guisado.
O programa, em verdade, estava dedicado, como se indica na página web da RTP, a Fernando Pessoa; todas as questões colocadas dizem respeito ao poeta dos heterónimos. Na altura, 1973, parece bem evidente aliás, o processo de canonização pessoana, iniciado pelo grupo da Presença em fins da década de 20, estava perfeitamente consolidado, até em termos muito próximos dos fixados por aqueles. Apenas chama a atenção o interesse do entrevistador pelo alcoolismo de Fernando Pessoa –lembre-se aquele Em flagrante delitro–, hoje assunto menos evidenciado ou até, quiçá, silenciado. Alfredo Guisado, a amizade obrigava naquela Lisboa, nega tais hábitos do amigo Pessoa, como já o havia feito bastantes décadas atrás.
Ao longo da entrevista parece percetível um certo agrado do entrevistado ao se associar a uma das grandes figuras do panorama literário português. Com efeito, Alfredo Guisado tinha em anos anteriores reivindicado o seu papel no surgimento da revista Orpheu: pouco antes tinha publicado Tempo de Orfeu, 2ª edição de vários dos seus livros e chegou até a dar notícia de um ensaio que iria publicar, O ‘Orpheu’ por dentro (história de uma revista literária), do qual mais não sabemos. A sua autorreivindicação teve, a bem dizer, escasso sucesso. Nas linhas de força da consagração de Fernando Pessoa –também Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros– ele, por diferentes motivos –também políticos– não con(s)tava.
O agrado com que se presta a ser entrevistado, porém, não implica um relaxamento nas respostas. Muito pelo contrário. Como tinha acontecido sempre à volta da Orpheu, Alfredo Guisado é consciente dos vários significados que o grupo implicava na Lisboa da altura, mostrando-se cuidadoso, por exemplo, à hora de incluir ou excluir membros do grupo.
Nos quase 16 minutos de programa, Alfredo Guisado lembra a origem galega de um dos heterónimos pessoanos ao relatar as tretas que para tal levaram a cabo Pessoa, Sá-Carneiro e ele próprio. Alfredo Guisado, de ascendência galega, como se sabe, manteve intensos contactos com grupos culturais e políticos galegos durante, pelo menos, as décadas de 10 e 20 do século passado. O “Dr. Amado Garra” mencionado, não era senão o, segundo o semanário El Tea, “caudillo de la causa agraria” –e muito provavelmente mação– a quem o Guisado mais agrarista dedicava nas páginas da mesma publicação em 1915 o poema “A reza do cavador”. Fica a dúvida, não obstante, de qual o heterónimo de galiziana origem, Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro? Todo parece indicar que se trata deste último. Em carta encenada a Pessoa, hoje conservada na BN, escrevia assim Guisado da Galiza:
Estive ontem uns momentos em Mondariz conversando com o Romão Peinador. E no parque apareceu também aquêle indivíduo que se chama não sei quê Caeiro e que já por cartas e por mais duma vez, em Lisboa, lhe falei dêle. Estivemos falando um pouco. É um indivíduo deveras esquisito. (1/10/1914).
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Foto AG (ca. 1930):