A Olalha era uma mulher cheia de desamor, desencantada da vida. Porém, sempre sonhadora. Tinha os olhos escuros e o cabelo preto, a sua estatura era mais alta do habitual nas mulheres do seu contorno. Vivia numa cidade andina onde os condores podiam às vezes ser vistos.
Como tantas mulheres da sua terra, casara jovem e sofrera a violência do macho durante décadas. Porém, as mulheres da sua geração começaram a se safar daqueles homens-machos e apreenderam a lutar pela sua liberdade. Liberdade, sim. E liberdade significava divórcio e carregarem com todas as despesas familiares, as do ex incluídas.
A Olalha era uma daquelas mulheres. Com o seu trabalho mal podia afrontar todas as despesas. O ex-marido não dava um centavo de pensão, nada. Mas ela era forte, era uma dessas mulheres feitas a si próprias… ou quase.
Entretanto, apaixonara-se pelo Chingo, cinco anos maior que ela, da capital, nos últimos anos do seu inferno de matrimónio. Ele era um homem casado em que ela se tinha apoiado. Ele foi a força dela e ajudou-a naquele horrível processo do divórcio.
– Quando eu me divorciar, deixarás a tua mulher e virás viver comigo? –perguntava ela.
Ele acariciava o cabelo dela e beijava-a docemente nos beiços.
Quando ela se divorciou, ele não deixou a mulher, embora sempre tivesse dito que não a amava, que ela, a Olalha, era o seu verdadeiro amor.
– Porquê? –perguntou-lhe ela.
– Não é o momento –disse ele–. Ocupa-te agora dos teus filhos. Precisam de ti.
Ela amava aquele homem, mas ele quebrara-lhe o coração.
Porém, umas semanas antes começara a trocar mensagens nas redes sociais com um estrangeiro. Era um europeu. A Olalha gostou logo dele, gostou da sua maneira de se expressar, da sua sensibilidade –era músico amador– e até ria das gralhas que cometia quando se expressava na língua dela, uma língua estrangeira para ele, mas que ele gostava de empregar. Chamava-se Pierpaolo e dissera-lhe que algum dia iria até ao país dela para a conhecer pessoalmente. Partilhavam ambos deles o gosto pela música.
A Olalha precisava de um confidente. Assim, depois de várias semanas de trocarem mensagens, ela contou-lhe a sua dor. Ele escutou atentamente, nem interrompeu para perguntar pelo significado de expressões ou palavras que desconhecia.
– Ele não te ama… ou não te ama demais e não tem a coragem para deixar tudo e ir contigo –foi a conclusão do Pierpaolo.
Ela soube que ele tinha razão.
Aquela noite, enquanto escutava Chopin sob a luz das estrelas na varanda da casa dos seus pais, onde teve que ir viver depois do divórcio por ficar sem casa, começou a pensar no Pierpaolo e na promessa dele de ir visitá-la algum dia.
Enquanto dava sorvos ao seu café instantâneo, pensava no encontro com ele. Antes teriam trocado milhares de mensagens, nem só escritas, também de palavra. Ouvira a voz dele duas vezes, soava engraçada, juvenil, embora ele fosse maior que ela. O seu sotaque estrangeiro era algo bonito.
Imaginou que ele viria em primavera. Já lhe tinha dito que lhe apresentaria os seus pais. Adotariam um gato, sim, porque ela sempre quis ter um gato, mas nem o seu ex nem o Chingo gostavam de gatos. Aliás, no dia da chegada dele, vestiria algo ligeiro, mas que permitisse mostrar que ela era mulher muito linda, que o seu corpo era desejável. Ele gostaria fisicamente dela bem logo. Ela já lhe dissera que não era mulher fácil, mas para ele… para ele naquela primeira noite já haveria surpresa. Sabia que ele gostaria do sexo com ela, porque as mulheres da sua terra sabem usar o sexo muito bem para fazer que os homens se sintam anjos.
E levaria o Pierpaolo a passear pela cidade. Ele ficaria espantado com tudo. Olharia para as raparigas jovens e bonitas que lá havia. A Olalha teria que ficar atenta. Teria sexo com ele todo o tempo para ele não pensar noutras mulheres. E vigiaria o telemóvel dele. Sim, espreitaria no seu telemóvel para descobrir se se escrevia com outras mulheres. Coitado dele se o fizer. O pior é que ele diria que precisava da sua liberdade. Ela dir-lhe-ia: “És como todos os homens”. Ele quereria acariciar-lhe o rosto, mas ela afastar-se-ia dele. Talvez ele viesse com flores. Mas a ferida já estaria feita. Não confiaria nele. E assim, depois de duas semanas, ele apanharia um avião de volta e ela seria apenas uma história dele, enquanto ela suportaria que o seu coração se voltasse a quebrar. Aliás, ele levaria consigo o gato que adotaram, porque ela não resistiria vê-lo correr pela casa, só lhe trazeria lembranças dele.
Sim, ela estava certa que seria assim. Conhecia muito bem os homens. Se alguém tinha que perder naquela história, que fosse ele, pensou a Olalha. Porque ela continuaria a gozar da música na sua solidão sob as estrelas.
No dia seguinte, sem qualquer aviso, o Pierpaolo encontrou-se com que estava bloqueado nos programas de mensagens instantâneos que partilhava com a Olalha e até o número de telefone dela nem era alcançável. Também estava bloqueado no perfil dela nas redes sociais. Não tinha qualquer acesso até ela. Não compreendeu nada. Tentou reler as mensagens antigas para encontrar qual a causa daquele comportamento da Olalha. Nada, não encontrou nada que lhe desse alguma pista. Só encolheu os ombros, pensou que não estava para paranoias, desligou o computador e saiu do seu estúdio. Sentiu então saudades do seu verdadeiro amor, do seu ukulele. Foi buscá-lo ao seu quarto. Quando foi tirar o ukulele do estojo, o que dele saiu foi um gato, aparentemente um gato da rua, vagabundo, que previamente esmagara todas as cordas do instrumento.
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