1.
Ameaça invisível
Veio de onde?
Para onde?
Ecos distantes
tão perto
tão longe
das florestas queimadas?
das árvores arrancadas?
dos ponteiros descontrolados?
não sei se é dia
não sei se é noite
veio das bocas famintas
veio das bocas canibais
veio das bocas sedentas de sangue
minha vida
sua vida
se encolheu
minha terra
meu planeta Terra
se encolheu
como uma pele ressacada de tristeza
nos tornamos prisioneiros de nós mesmos
nos tornamos prisioneiros de quatro paredes
nos tornamos prisioneiros do invisível
do inimigo invisível
está nas ruas
nas latrinas
no ar
na dor
na pele
no dia cinzento e cego
está nos ombros caiados dos crédulos crucificados
está na maldição do homem
está nas máquinas com seus dentes iluminados como uma imagem santa
está nos calcanhares senis
está aqui
onde?
Há quanto tempo?
me disseram tantos e tantas
oblações e barganhas
a poesia coagulou
ferida aberta
Fique em casa!
Fique em casa!
a chama da poesia ilumina todo o planeta
Fique em casa!
Fique em casa!
Evoque um zeitgeist
evoque uma oração
evoque os seus delírios
evoque Maldoror
evoque seus males de horror
Me disseram que é para salvar a humanidade
o chão rachou
lápides se abriram
as estátuas sangraram na noite suicida
com estrelas cegas
e cantam salmos com anjos sem asas.
Não há salvação!
nossos êxodos se tornam ilhas
a festa acabou?
o riso amargo
tudo se encolheu
até o medo
até a dor
muito antes da ameaça invisível
havia sons de vidros quebrados
insetos canibais comem nossos sonhos
nas noites profundas
qualquer um pode ser um perigo
qualquer amigo
qualquer pai
qualquer sombra
isolar é a prova de amor?
mesmo que isolar também pode matar?
liberdades fracas e insuficientes
para viver
para morrer
ressoam nos corpos silenciosos
futuro incerto
amores distantes
e o depois está longe
tão longe
já não consigo ver
*
2.
Os meus olhos são levados
pela vertigem do dia…
E quem segura quem?
me amarro e desamarro
cruzo e descruzo
bordo e desbordo
ao longo do seu corpo
Tronco
as linhas de nossas vidas
entrecruzadas
quem se importa com quem?
…
e tudo é sintaxe
a beleza, agora?
Tessituras
*
3.
É só uma parte
Parte de mim é silêncio
Palavras privadas
Parte de mim são círculos nas águas
Circunspecto
Parte de mim é uma aparência de um sonho destruído
Parte de mim são estátuas esculpidas em praças
Braço esquerdo decepado
Corpo carcomido pelo tempo e pela acidez do ar
Parte de mim é rapsódia
Fulcral e folclórica
Uma parte de mim é uma fronteira invisível
Paro antes
Uma parte de mim não é dia e nem noite
Sombras, somente
Uma parte de mim é funambulesco
Mise en abyme
Uma parte de mim é riso decadente
Macambúzio
Uma parte de mim Sein zum tode
Sem salvação
Uma parte de mim são conexões randômicas
Sem validade
Uma parte de mim carrega na pele o medo
As mãos de Platão são sombras noturnas
Uma parte de mim Maleficarum
Um Kraemer ou Sprenger
Uma parte de mim busca a imortalidade
Limpo os ossos e sopro o pó de Gilgamesh
Uma parte de mim é Maurício
Às vezes, a mesma parte é Antônio, é Maria
É Antenor, é Sebastiana, é Lourdes.
Uma parte de mim é.
Uma parte de mim está antes do zero.
Antes do início.
*
4.
Cidade vazia
vazios
ventos vazios
nuvens vazias
céu vazio
pássaros vazios
vazios
homens vazios
tão distante
tão perto
o cachorro não latiu
o galo não cantou
amanheceu uma manhã vazia
anoiteceu uma noite vazia
a cidade silenciou
o homem silenciou
onde ele está
qual parte cidade?
qual rua?
qual caminho?
qual endereço?
qual casa?
qual cômodo?
tudo vazio
vazios
homens parados como molduras de janela
saboreiam gole a gole o tempo que passa
todos os dias o mesmo tempo
é assim hoje para ele
será assim amanhã
o vazio o matará
seu vazio oco oco oco
seu vazio faz eco eco eco eco
*
5.
Era uma vez…
Uma terra não tão distante assim, um planeta chamado Terra…
Não foi estrondo
Não foi uma hecatombe
Não foi
(pausa intensa e demorada)
E é assim que o mundo morre
Na longa e lenta pandemia
Tatear o invisível
Tatear o visível
E todas as antinomias aparecem
Ouvimos todos os sofrimentos dos humanos vivos
Ouvimos todos os sofrimentos dos humanos mortos
Como uma gigantesca egrégora
E a beleza da noite se faz mais escura
E é na noite mais escura
E é na noite mais escura
Que o desespero humano se intensifica
Mais que o brilho das estrelas
*
6.
falo de sonhos desfeitos
e nada poderá repará-los
as ruas estão silenciosas
as penas dos pássaros caem
olho para o céu
e meus sonhos adormecem
dentro da gaveta
que cheira noite.
*
7.
Húmus
Vértices de um céu plúmbeo
Gotas de orvalho ácidas caem nas cabeças das formigas
Sapos não coacham mais
Silenciam-se!
Nem o zumbido de uma mosca
Sua língua cola
Visões desaceleradas.
O cachorro pestilento
Morde um carrapato e
Cospe seu sangue
Um velho na cadeira de balanço
Balança a vida sem pressa
Sorri sem dentes
Ao ver o vira-lata
Com o rabo no cu
Plantações de coca bolivianas
Perfumam as mãos cálidas das nativas
Compulsões dos amanheceres
Mastigadas pelas bocas indígenas
Adormecidas sem beijos.
O peixe sobe pelas ribanceiras
Se suicida
O pescador cheio de inviabilidades
E redes que enfeitam seus dissabores amorosos
A vaca berra o rio Ganges
Água turva abençoada por Shiva
Impurezas líquidas
Purezas da alma.
Nas confluências da vida
O negro é açoitado
Carne negra chicoteada
Pelos bigodes de Abraão Lincoln
E emplastos e bálsamos
Panaceias dos inconfidentes.
Suores dos negros escorrem
Descem pelo corpo preso ao fálico tronco
Descem pelos corpos das alvas e níveas
E bucetas rosáceas donzelas.
Nas curvas do Sena infectado
Victor Hugo se sentou e sentiu
A miséria parisiense
Merdas e ratos e homens chafurdam
Em um banquete de estrumes de cavalo
Uma orgia pantagruélica.
Na outra parte do Sena,
Um bêbado poeta chora sua dor em uma garrafa de absinto
Ao lado de um cachorro.
A poesia é um cão.
Abandonado. Seu latido ressoa nos tímpanos de um suicida
Que se joga nas águas poluídas.
Poesia é podridão e poluição.
Um pássaro quer alcançar o sol
Suas asas são queimadas
Sua queda cai sobre as asas de um avião.
Na luz do abájur de um quarto qualquer
A aranha tece seu sonho
E fica encaracolada nas nervuras de suas patas.
Nos ângulos dos ponteiros do relógio Tower Clock
De ponta-cabeça, lá estava ele, o morcego de Augusto dos Anjos
Com seus olhos voltados
A Whitechapel, aos bordeis,
O Jack the Ripper!
Sim, ele, o morcego!
Dentes afiados nas goelas das prostitutas
Mulheres secas e sem sangue.
Desertos egípcios faraônicos
Sísifo aparece com sua pedra
Ardentemente, entre acácias
Seneh!
Seneh!
Eterna sina!
Ehyeh-Asher-Ehyeh!
E ele carrega o mal da humanidade.
Em um lixão qualquer
No meio de variados lixos
Um livro de poesias
Sujo!
Fedido!
Borrado!
Páginas desfeitas
Foi encontrado!
Mãos sujas
Boca lambendo moscas ao vento
Lambem os dedos fétidos
O homem na sua insignificância
Lê
Urubus em auréolas circulam a podridão
Protegem a poesia daquele lugar.
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