“Y entonces, qué queda de las pequeñas podredumbres, de las pequeñas conspiraciones del silencio, de los pequeños fríos sucios de la hostilidad? Nada, y en la casa de la poesía no permanece nada sino lo que fue escrito con sangre para ser escuchado por la sangre.”
(Pablo Neruda, “Conducta y poesía”, Caballo verde para la poesía, 1935).
Neste início de outono os pardais do Parque das Conchas por onde costumo caminhar comem as azeitonas que caem das oliveiras. Gosto de me sentar à sombra das árvores e deixar-me encandear com o brilho das folhas prateadas. Pelas bandas de Belém descobri zambujeiros, oliveiras bravas. Oliveira foi para mim durante muitos anos árvore literária, como tantos outros nomes de árvores que aprendi em molde de letra escrita. No entanto, existe uma variedade de oliveira e de azeitona chamadas galegas, porque também é oliveira, a nobre oliveira civilizadora, árvore que enraizou em chão galego, expulsa por lei dos homens e não por lei da natureza, lei da rainha dita católica que criou um imposto de quatro reais por árvore que motivou que se arrancassem boa parte das oliveiras da Galiza. A condenação ao desterro foi renovada dous séculos depois pelo conde-duque de Olivares, que assim quis eliminar concorrência para a produção dos “olivares” que ostentava no seu título de nobreza. A azeitona galega, “pequena, bicuda e exclusivamente portuguesa”, como se pode ler nas descrições que dela se fazem, sobreviveu nos últimos séculos longe da sua matriz, como tanta cousa que do nosso chão saiu.
Sirva este exórdio para exemplificar algumas das minhas obsessões: como são assimétricas as genealogias, como pelas analogias se podem ver as culturas humanas como um tecido de uma complexa trama de fios, como nem tudo o que é próprio é territorial, como as influências, se história das influências construímos, nunca são num momento e um sentido únicos. Nem sempre existe ou é visível a continuidade duma história narrada pela génese e a duma história narrada pelo sentido. Extensas margens de invenção que muitos gostamos de explorar, porque a grande epopeia ainda está nos seus inícios, porque a aventura dos sentidos chama por todas as vidas e a memória é criação a cada instante, não reprodução. Sendo este ofício de intérprete de literatura ofício de encontrar a relação, a operação básica vem sendo por vezes explicar a razão, pela origem ou pelos fins, das analogias. E nem sempre, como diz o ditado alemão, onde há analogia há genealogia. Eu gosto de ver as analogias pelo efeito, pelo trânsito que permitem ao serem, basicamente, um momento de espelho e identificação. Visualmente as analogias são encruzilhadas para a descoberta de um sentido, por permitirem ramificações nos significados das palavras e reviravoltas nas histórias, com agá maiúsculo ou minúsculo. Penso nisto vagamente quando me lembro dos primeiros livros de poesia dos africanos residentes em Lisboa que me chegaram às mãos. Ler literatura da diáspora africana em português foi um processo para relativizar hábitos críticos e conceitos que aprendi na minha formação académica. Fez-se-me visível até que ponto tinha aprendido a compreender e analisar pelo contexto e a identificar pela diferença, sobretudo a fechar sistemas em cânones nacionais, pedra basilar de alguma ideia de identidade. Faltando-me conhecimento da História e das histórias das que estes poemas são sinais, do cânon do que eventualmente fazem parte, percebi até que ponto não sabia o que havia de dizer para os comentar. No entanto, aí estava uma voz a comunicar comigo, e na minha língua. E não será que muito comentário não é se não tomar o texto poético por exemplo de um discurso alheio ao próprio poetizar?
Goretti Pina, a jovem escritora que apresento nestas linhas, é autora de dous livros de poemas e um romance. Viagem, o seu primeiro livro de poesia, é geografia de aventura que se percorre suavemente com o fio argumental dos encontros e desencontros dos amantes, uma cartografia organizada pela paixão, um diálogo com um tu que se vai desenvolvendo em cenários exteriores e interiores, como o Chiado lisboeta e os seus rios de gente ou os cenários anímicos das praias da Ilha do Príncipe, terra natal da poeta, paisagens íntimas que são centro porque o encontro dos amantes assim o faz acontecer. É o sentimento que descobre a continuidade do significado e o sentido da viagem mais além da descontinuidade física. Uma atmosfera de suavidade paira sobre esta narrativa poetizada, com versos que docemente se fixam na memória, como aquele “Quando posso regresso à ilha. Quando não posso também”.
O romance No dia de São Lourenço, ambientado na Ilha do Príncipe, desenvolve uma trama que por vezes parece folhetinesca: o namoro entre uma jovem do lugar e um médico português que chega à ilha no dia em que se representa o “Auto de Floripes”. O auto, teatro de rua que mobiliza ano após ano a população e principal evento cultural do ano na ilha, tem como argumento o enfrentamento entre mouros e cristãos e está inspirado num outro que se representa na aldeia das Neves, perto de Viana do Castelo. A jovem protagonista do romance é também quem faz a personagem de Floripes, filha do rei muçulmano que se apaixona pelo cristão Gui de Borgonha. O romance torna visíveis essas múltiplas genealogias nascidas deste Atlântico de fortes correntes que também a mim me deu a vida. Para além disso, a Goretti Pina tem a invulgar capacidade de contar profundos dramas humanos envolvidos numa aparência de inocência, como este contido no namoro entre a jovem do Príncipe e o médico português, oferecendo-nos um exemplo, no sentido mais narrativo do termo, do nada neutro conceito de “mestiçagem”.
O principal fio da trama do livro de poemas que este ano se apresenta, A respiração dos dias, é a saudade da terra perdida e o testemunho anímico da tensão por manter a continuidade vital e poética quando a física se sente quebrada. Desde a primeira leitura ficou-me a marca na memória das suas variações sobre o elemento ar. Desde o título, a respiração, o pneuma, o espírito que se quer ligado aos dias, que se quer rítmico, como o do tempo vivido na terra que se deixou. Ar também que é a continuidade desejada na vivência da distância do desterrado, em imagens de movimento contínuo entre o lá e o cá, entre o interior e o exterior. Ar também é a casa dos pássaros e o sonho, e sobretudo é o canto do ôssôbô, pássaro das ilhas “cujo canto desfaz suavemente o silêncio da mata”, segundo rezam algumas descrições que dele se fazem. Assim no poema “Ôssôbô ficou distante” (“Aqui sou eu quem canta/ nos momentos de aperto”), no poema “Fé” (“se o ôssôbô é tão maior que o seu canto”), ou no poema “Bagagem” (“Trouxe o coração liberto para voar/ mas prisioneiro daquele chão,/ de todo aquele lugar”).
Outras imagens com que se constrói o fio narrativo do desterro é o dos rios que correm e o da casa abandonada. A leitura do poema “Correm os rios”, com a sua imagem de continuidade, liberdade e vida, logo evoca na memória poética outros poemas de desterro. O primeiro é o salmo bíblico “Junto aos rios da Babilónia”, em que os filhos do desterro penduram as suas harpas dos salgueiros quando aqueles que os fizeram prisioneiros lhes pediam que cantassem. A seguir, o rio continua nos versos desterrados de Camões em “Sôbolos rios que vão” ou de Rosália de Castro em “Adeus rios, adeus fontes”. A casa abandonada, a presença da avó e os alimentos, o lume familiar do poema “Rocinha” ou o sonho do outro, amante perdido do poema “Uma cabana” levam-nos a pequenas narrativas poéticas onde o mais precioso é o quotidiano repetido, tão humano, tão impossível, do que o desterrado se sente expulso. Há ainda a sonoridade do crioulo em puras enumerações, com nomes que se repetem sem preocupação por comunicar, com a esperança de que os sons guardem por algum efeito de magia o laço com a origem, em poemas como “Bagagem”. O poema que dá título ao livro, “A respiração dos dias”, é expressão do desejo de encontrar a continuidade de qualquer criatura (“Já nem comigo me identifico/…/ Queria encontrar um caminho, qualquer que fosse./ Plantar uma árvore e cuidar que crescesse./ Desfrutar da sua sombra numa boa companhia,/isso faria/ se não podendo merecer a magia/pudesse ao menos contar com a solidão”). Fica a pairar entre alguns versos a bela imagem das cidades ocultas na poeta, como no poema “A cidade que sou” (“Entra-me a manhã/ pela cidade que sou em segredo/ e pinta-me de louro/ as artérias do cabelo deste vento”). Completam o sentido do conjunto do livro os poemas dedicados aos pais e ao irmão que me levam à frase de Neruda que coloquei como epígrafe desta resenha. Com ela quero vindicar essa poética enraizada na vida, nascida da pura necessidade de comunicar, como neste livro, a experiência de que a poesia seja registo dum processo de tomar “consciência de mim”, como diz a brevíssima nota inicial.
No livro A conferência dos pássaros do persa Farid Ud-Din Attar conta-se a viagem das aves para encontrarem ao seu rei, viagem cheia de provas e perdas. No fim da viagem descobrem que o rei é um espelho que lhes dá a experiência de desfazer toda a fronteira entre o interior e o exterior: tudo o que está fora está dentro, tudo o que está dentro está fora. E pois é da minha experiência sentir que toda a viagem é procura do paraíso, seja esse o testemunho dos poetas em trânsito que como os pássaros de Farid Ud-Din Attar procuram sentidos. Agradeço à Goretti que trouxesse à minha particular viagem poética o suave canto do ôssôbô, que chegou como algum dia chegaram as oliveiras, as araucárias e o pássaro quetzal. E desejo-lhe que todos os acasos da sua viagem literária encontrem sentidos. Em mim, poeta sonhadora de ilhas atlânticas, já encontraram.
“Fé
Transgride as leis do sol
esse tempo sem idade.
Esse relógio que repousa as suas pressas
neste pouso equatorial.
Pouso concreto de sal horizontal
neste roseiral icónico
de gritos verdejantes.
Quantas cidades subconscientes
nas veias que te sentem?
Quantos pretensos progressos?
Águas em caudal de silêncio
se o ôssôbô é tão maior que o seu canto!
E todo o incerto papagaio
que em murmúrio esculpe a chuva
conhece melhor o ramo onde desassossega as asas
porque constrói no sonho a casa
de relâmpago e fé de alma.”
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