Além da dor vital nasce o poema. O poeta não sabe donde caem as pedras e só o amor o salva da aniquilação. Uma incerteza absoluta provém do mundo chamado de real, uma sorte de promessas ou abstrações humanas que na realidade alimentam a ignorância e o caos. O poeta percebe a desarmonia constante que ressalta a debilidade humana, porém o amor propicia uma vinculação perene com o mundo e constitui o único fato que na verdade perdura. A única realidade que não pertence ao atrezzo.
O ser humano é simples e por isso padece. A sua animalidade essencial lembra a simplicidade de um réptil (“sei que arrastarei o meu ventre até ao final”) e contém não tanto uma sabedoria quanto uma tristeza permanente (“a criança triste que ainda sou”) perante um obscuro destino (“conheço bem o nosso destino”) que consiste em nada acontecer, em delongadamente viver (“os dedos começam a arder e nada ocorre”) numa opacidade inevitável. Todas estas forças deparam numa contradição vital irresoluta (“por fim assumo a mentira de que não te amo”), fato que implica a falsidade ou impossibilidade da negação do amor, até porque o amor é o único que de positivo temos direito a desfrutar. Se bem os temas assim tratados oferecem um tom confessional, ninguém deve esperar em rigor uma confissão sobre qualquer aspeto da vida: o poeta transcreve a complexidade vital como a indivisa experiência de uma miríade de sensações que atingem o íntimo em cada disparo.
Existe também neste livro uma rotunda dimensão política. Disseram a justiça ser uma das ferramentas que foi criada para nos prover de felicidade, mas é uma construção deliberadamente débil, em constante avaria e que se esfarela como uma torre de areia. Por isso nada semelha suster o mundo (“intuo o vazio que me mantém erguido”), e nas ruínas do material, do social e do pacatamente espiritual só resiste o amor e o seu antagónico destrutivo, uma ânsia da revolta que, como uma energia ancestral, perigosa e libertadora é capaz de esquecer a paixão e a piedade para catalisar a mudança (“é outra vida, […] sem paixão, sem piedade”). Uma ânsia que se revela no quadro individual como uma angústia (“a primária angústia que me configura”), mas que traduzido numa insatisfação tamanha pode conduzir à raiva.
O destino, a justiça e a pátria na prática são tão só miragens. A religião, a política, as ideologias, etc, são ferramentas tão interesseiras que só o indivíduo enfrentado à sua mentira pode endireitar o mundo. Nenhuma certeza é possível, e as máscaras devem cair já. Nesta linha, como negador das abstrações que oprimem o sujeito individual, Outra vida é um livro niilista.
Por último, as contradições fazem parte do poeta desde sempre, e florescem numa dimensão tanto política quanto ética. Nascido num mundo eminentemente operário, reconhece-se parte dele e ao tempo é capaz de perceber, graças à perspetiva poética, ao sentir refinado e profundo, a tragédia da classe operária: se inconsciente da opressão que padece não poderá reagir contra ela, e se culta e conhecedora da sua situação é porque ficou aburguesada e já nem terá vontade de iniciar a revolução. Portanto, ao sentir-se assim o poeta, como sendo portador de uma superioridade percetiva e mesmo analítica, pesa nele uma distância dolorosa a respeito da sua origem social e, em consequência, fica a desgosto por uma sua posição “aburguesada”. Por isso um sentimento de culpa (provavelmente inoculado pela educação judaico-cristã) deve ser tratado, e o poema surge como terapia da inevitável ferida; até porque no mundo poético o convívio entre termos contraditórios é possível. Deste modo o poeta, assumindo a sua função, pode salvar a distância e anular ao menos temporalmente um desassossego, o que permite, de certo modo, a vivência azeda de um problema político ser atenuada mediante o poder balsâmico da poesia.
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