Como um ritual da vida metropolitana, lá me encontrava, dentro de um ônibus, sentado e concentrado na minha leitura, lia um livro de Enrique Vila-Matas, Não há lugar para a lógica em Kassel, envolvido no poder mimético das palavras que me conduziam ao meu destino, a minha companhia da poltrona ao lado, conseguiu me tirou dos longos e deliciosos caminhos, em que o autor estava me proporcionando. De soslaio, obliquamente, olho. Tentei não despertá-la do transe linguístico que ela se encontrava. Queria saber o que lia por estar tão envolvida no poder transformador daquelas letras. O balançar do ônibus, as conversas adjacentes e ininterruptas, parecia uma babel, às vezes incompreensíveis linguagens eram ditas, nem pareciam que todos ali naquele retangular meio de transporte falavam a mesma língua. Vinham de todos os ângulos, palavras nexas e desconexas e agora passei a observar, coisas de segundos, os manuseios e olhares de todos ali. Ônibus lotado e muitos em pé. Tive a sorte de estar sentado. Havia, acredito, mais pessoas em pé do que sentadas.
Tinham olhares cansados, cílios pesados pela carga de exigências do dia de trabalho. Muitos estavam com um objeto extensivo ao corpo, seus celulares. Era como uma válvula de escape às longas horas de trabalho, de obediências, de ordens, de disciplinas, de regras e normas estabelecidas. Os celulares e seus aplicativos e suas linguagens ditavam as descargas das obrigações diárias. E minha companheira de viagem lia e lia, como uma adoração, como um ritual ao totem chamado bíblia, rapidamente, sem tirá-la do transe, vi que lia o Apocalipse, porém, a grande revelação e exposição da leitora deste livro, também foi sua beleza. Dentro daquele retangular movimento estava ao meu lado uma mulher soberba de beleza. Sua singularidade não estava somente nas escrituras, estava no seu corpo apocalíptico, timidamente vejo partes de seu corpo, brilho de âmbar, contornos refrescantes, a luz que vem de fora, atravessa a janela e desce pelos cabelos, pela pele, pelos pelos e pelos bicos dos seios grudados à blusa transparente. Lá me encontrava, no limbo, entre Kassel e o Apocalipse, entre dimensões contemporâneas. Sentia-me desconfortável. Que criatura é aquela! Queria ousar. Queria saber dela, do seu nome, dos seus gostos, da pimenta dos seus lábios, vermelhos e picantes e pecantes. Desejava sua boca apocalíptica e nela voassem palavras que entrassem nos meus poros eriçados e ali, me beijasse sem o pudor do dia e das pessoas cansadas. Ela lia a parte do Apocalipse que, rapidamente, meus olhos conseguiram ler, falava sobre visões, acredito que seja sobre os setenários, as sete taças, as sete igrejas, os sete selos, as sete trombetas. Fiquei pirado naquilo, tudo se encontrava pelas significâncias dos códices da vida e da linguagem. Eu ali ao lado de uma ninfa de Bouguereau, também estava ao lado da perfeição, o número 7, a inteireza deste número naquele ônibus, naquele corpo. Mesmo, com as imperfeições lascívias, havia a perfeição do seu corpo cor de prata fundido e depurado 7 vezes, como Pitágoras apresentou este número sagrado. O Apocalipse daquele momento, daquele lugar comprimido me dizia as indefinições do ser. O ônibus parou. Ela continuava com-penetrada nas letras indefinidamente sem limites. Nas paradas, descem e sobem pessoas. Descem e sobem pessoas, e eu desço e subo meus olhos, desço e subo meus olhos. Já tinha me esquecido do meu livro, não tinha mais nenhum valor, insignificante e desprezível, só me lembrava de algumas passagens que havia nele. Olhando furtivamente à mulher, me veio Sehgal e uma pintura de Bouguereau. Disfarçadamente, ri, como se ri um deus. Era um deus que escovava a poeira do meu pensamento e protegia a minha descoberta como um cioso e como amante de uma mortal. Um calor me consumia como uma fornalha crepitante, me peguei suando e ela me ignorando apocalipticamente ignorando. Sentia calafrios, eles adornavam de cima a baixo da minha espinha. Vi que seus mamilos flutuavam no ar como uma alternativa erotizada. Ah, como queria ser as letras das páginas daquelas escrituras, ser o seu sagrado, ser os signos arquétipos e que a levem ao êxtase.
Seu corpo, mesmo sentado, parecia de uma ninfa, das 40 ninfas, As Oreades, de William Bouguereau. A tarde se dissipava como as cores presas nos cumes dos prédios e das casas ao olhar pela vidraça do ônibus. Aquela ninfa sentada, me fez vê-la flutuar, voar ao céu no entardecer da primavera e voltaria às regiões etéreas habitadas pelos deuses. Ela me fascinava e me assustava. Sou apenas um voyeur desta ser da natureza, esta criatura que é a natureza. O êxtase dela está no seu olhar diante das palavras reveladoras e visionárias e até escatológicas. Meu olhar, um olhar de um sátiro ansioso, diante desta visão soberba. Vejo dentro daquele retângulo uma plateia contemporânea, com seus corpos lânguidos, como uma visão de Sehagal, como dizia: “quando a arte passa como a vida”, assim eu a via, ali, ao meu lado, uma performance, uma ex-posição, como são as obras de arte em Kassel. Para Sehagal, a arte tinha que ser vista ao vivo e sendo assim, a arte passa como a vida, e a leitora do Apocalipse passa como a vida passa. As performes e os movimentos sagrados dela eram atemporais aos meus olhos e ao meu corpo incomodado. Os movimentos eram obstruídos pela minha vigília, os olhos seguiam horizontalmente, de lá para cá, de cá para lá, os caminhos das letras subiam e desciam, às vezes, seu corpo cansado de estar sentado, se mexia para ajeitá-lo pelo desconforto do banco.
Estava se aproximando da estação, ali nós iríamos nos separar para sempre, como se nunca tivéssemos nos vistos, como se nunca eu a tivesse visto dentro de um ônibus. Tudo aquilo era como uma fotografia de Ryan Mc Ginley, uma total libertação e revelação. Um certo hedonismo presente em cada criatura. Ela, continuava para mim, uma ninfa, um ser etéreo que voou em uma tarde cinza. E eu, ali como um sátiro a grunhir por perdê-la diante dos meus olhos, e assim o mundo da arte deixou de ser autoritário e passou a ser democrático.
Desci do ônibus e não a vi mais. Sumiu, se perdeu diante das confusões daquele lugar. Não consegui nem ver o seu vulto, se esvaiu na incongruência da dialética do tempo. Fiquei alguns segundos à procura, quem sabe de uma epifania, quem sabe o mundo se acaba neste momento de puro êxtase e visões e revelações e perfeições. Ela se foi com as escrituras, com as palavras grudadas na sua pele desnuda.
*
«Sou Maurício Gomes, tenho 49 anos, professor de literatura, jornalista cultural e escritor. Meu primeiro livro foi lançado em 2012, (Des)caso com poesia: Inquietações. Participei de várias antologias e revistas literárias (Portugal, México, Moçambique, Estados Unidos e Marrocos) e festivais internacionais de poesia (México, Marrocos e Tunísia). Fui agraciado em alguns concursos de poesia e contos. Sou do Brasil e moro em São Paulo.»
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