O ‘poema de comboio’ compreende um projecto que tem acompanhado sazonalmente, quase diariamente, a ideia da viagem, do movimento, do quotidiano. Trata-se de uma reacção às constantes mudanças, ao nomadismo inventado pelo autocarro, pelo comboio suburbano, pelo metro, pelo trabalho precário e pelos breves momentos de sonho no contínuo temporal da vida em movimento.
Tem viajado por diferentes suportes: um jornal, uma revista, uma revista digital, um site de media independente, um blogue colectivo e uma revista digital não periódica. Parece que o seu destino é estar disperso, não cronologicamente, por todos os locais possíveis e imaginários. Quem sabe se não pertence num papel reciclado deixado num banco da carruagem, ou colado junto aos anúncios que reflectem as crises nos supermercados, ou nas paragens de autocarro…
Deixo esta segunda remessa para a Palavra Comum, mais 4 modestos poemas (ou textos a que gosto de chamar poemas) A sua coerência está na sua falta de coerência: o tempo, a palavra, a terra, a pertença, as formas espectrais que são pessoas mas nada me dizem, nada me sussurram, a língua, a comunicação ou a falta dela.
Mais uma vez deixo um especial abraço, desta feita vai para Ramiro Torres e Alberto Pombo, mas também a Nuno Mangas-Viegas, ao colectivo d’A BESTA (Filipe Adão, André Pires Calvário, Hélder José), à minha Ana, ao Chico e à Papoila.
poema de comboio #46
ninguém tem sono
só mesmo os olhos da tua terra
só mesmo aos olhos da tua terra
se estendem sonolentos os dias
perante os lentos passos
dos olhos da tua terra
os dias esperam sonolentas noites
de arrepios
aos olhos de todos aqueles
que estão na tua terra
ninguém dorme
aos pés da tua terra
perante os sonos estendidos
e as noites diurnas
somente olhos da tua terra
aos olhos da tua terra
dormes estendendo-se contigo os crepúsculos
da tua terra. e os dias noctívagos esperam
na tua terra, olhando, só aos olhos
só os olhos da tua terra.
ninguém esperava ser outro
perante os olhos
aos olhos daqueles que vêm olhos
todos dormiam sem sono na tua terra
nocturnando os dias perante os sonhos
os sonhos aos olhos do sonhador
mais um parágrafo
aos olhos de ti
aos olhos que comem a tua terra
com olhos comes a tua terra
comido pela tua terra
gritas para parar o próximo grito
é aqui que ele quer ficar
aos olhos de si
na tua
na tua vez de lançar dados
aos olhos dos da tua terra
aos olhos nus da tua terra
aos olhos nus
a nus
poema de comboio #48
não tenho voz perante
a multiplicidade de vozes que os passos trazem
ao longo de um corredor da carruagem de trás
seria tão mais fácil usar os pronomes antes do verbos
generalizar os passos e sair sempre do lado esquerdo da carruagem
as paragens acolhem estas vozes, expectantes
espectros de plenitude sobre rodas, sobre carris e pronomes
e verbos e passos apressados
há uma imponência geral no desprendimento particular de cada um
uma velocidade com que a vista se cola nas janelas do comboio
um mar pisado e alugado à possibilidade de se ter tempo para um nada
algo de extremamente errado existe no tempo que se tem ou não se tem
que medo intenso traz o mar quando não é dono de si
a temperatura exterior interessa-me tão pouco quando estou frio por dentro
de mim, da carruagem, de todos vós e todas as vozes que se encaixam
já não falta assim tanto para me entender no meio da multidão fonética
isolar factos observáveis para generalizar as análises
esta paragem é, no preciso momento em que é, todas as outras paragens
do mundo, minhas caras e meus caros, aquele que aflige o ar
com tantas vozes distintas e com tanto nada para dizer
poema de comboio #50
olho para o fundo de um poço
a ofegante cigarro no canto da boca
a demasiadas milhas percorridas para o ver
deitado num leito de palha e de água, lençol.
vejo de perto a solidão do eco
a um parágrafo em cada carruagem
a e seria mais fácil entrar no comboio para o ver
deitado na linha em busca de um sono, lençol.
a há algo de estranho em tudo aquilo que é ausência
a ofegante o último cigarro, o último lençol, no canto da boca
seria mais fácil entrar no comboio, milhas de solidão
do eco, um parágrafo em cada eco, uma carruagem em cada comboio
a as magníficas carruagens, todas iguais,
solitárias carruagens do comboio espectral, sem fumo
no canto da boca. e é assim que pensamos o mundo
a e seria mais fácil entrar no sonho ofegante
a vejo de perto o eco igual a todos os tristes cigarros
ela mal precisa de outra criança para passar ao comboio fumegante
a deitada, restava, na linha, no lençol estranho do fumo
e só no dia seguinte conhecia as entranhas da solidão –
falava mais devagar dentro das luzes da cidade desperta
a cansadas ruas, zoomavas o lençol das magníficas camas no ar
desapareciam no canto da boca os pensamentos formulados acerca do humano
na terra, de perto, cada eco perdido em vãs esperanças do eco.
a usamos o eco da nossa imaginação para certificar o sol da palavra
a pisamos o solo firme que ainda cheira a terno
a sabe-me a falta de ar este troço de pão sem bolor –
as fantásticas marcas verdes no alimento apodrecido
o alimento da mente, no canto da boca, o alimento do fumo
a uma ganza no canto da boca, e apenas disfrutar da aprendizagem
mútua que nos traz o diálogo. entre todos os dias e nenhuma noite fugaz
a brilham as lâmpadas que atraem mosquitos fartos de sangue
a reciclando as toxinas. uma objectiva sobre a cidade ribeira
a tudo no fundo de um poço sem limites ou salas de espera
a um sentimento simples desenhado a lápis 6b esborratando o papel
ela só. um retrato que expressa a solidão – um cigarro – num banco de costas para o caminho
poema de comboio #51
se apenas
em cada verso eu procurasse a perfeição de um caminho
não sei
não sei se alguma vez chegaria a partir
se por momentos
em cada verso encontrasse outra pedra de um caminho
não sei
se seria apenas para me orientar
ou sempre para me perder
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