Fado Maior. Letras para fados tradicionais é um livro de Hélder Joaquim Gonçalves, publicado por Lua de Marfim em Junho de 2016. Nascido em 1951, na cidade de Portimão, onde reside, é, desde 1987, professor de Português do ensino secundário. Atualmente, leciona na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, em Portimão.
Desde a Palavra Comum agradecemos ao autor a sua disponibilidade para publicar aqui estes excertos da sua obra.
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TODO O AMOR NASCE ETERNO
Música: Fado Tango – Joaquim Campos
Permanente inquietação,
Desassossego sem fim,
Certezas do coração,
Incertezas da razão,
Se um diz não, outro diz sim.
Todo o amor nasce eterno.
É da sua natureza.
Traz Primavera ao Inverno,
Põe a alma em desgoverno,
Abala toda a firmeza.
O amor é como um barco,
Que não tem leme nem velas.
Se o coração nele embarco,
Num abraço tudo abarco
E abro todas as janelas.
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UM FADO COMO ASA
Música: Fado Correeiro – Alfredo Correeiro
Ensaiamos despedidas:
“Desta vez é que é de vez!”
Mas voltamos sempre atrás.
Promessas nunca cumpridas,
Para bem dos dois, talvez,
Nenhum de nós foi capaz.
Pedes que cante um poema,
Que ouviste algures, no cinema.
Qual é, não sabes dizer.
Já nada sabes da história
Nem te ficou na memória
Uma palavra sequer.
Pedes-me a luz dos poetas,
Um ramo de violetas
E, no meu peito, aconchego.
Mais do fado és, que de mim.
Gosto de ti, mesmo assim,
Para meu desassossego.
Dou-te um fado como asa,
O meu peito como casa,
Dou-te os braços como abrigo;
Dou-te os meus versos que escrevo,
Os que a escrever não me atrevo,
Os que eu quero e não consigo.
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FADO DA DEMORA
Música: Marcha do Marceneiro – Alfredo Marceneiro
Ó meu amor, não demores,
Da Primavera, os alvores
Já se anunciam no vento;
Já voltam as andorinhas
E às almas que estão sozinhas,
Trazem-lhes mais sofrimento.
Não sabes nem adivinhas,
Quanto há de saudades minhas
Nas folhas que andam no vento.
Vem, meu amor, não te atrases,
Que de tudo são capazes
As horas da solidão;
Cada hora em que tu estás
Longe de mim, só me traz
Mais penas ao coração:
Tudo é breve, tão fugaz
Tudo se faz e desfaz
Nas voltas de uma ilusão.
Vem, amor, dá-me essa graça,
Vem dar ao tempo que passa
Um tempo de maravilha;
Vem matar esta saudade,
Neste mar que tudo invade,
Meu amor, vem ser a ilha.
Vem, plena de liberdade,
Vem inundar a cidade
Com essa luz que em ti brilha.
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PONTES
Música: Fado Margaridas – Miguel Ramos
Como botão de rosa que se abrisse,
Anunciando eterna Primavera
Ou um sol por entre nuvens, que surgisse
Assinalando o fim de longa espera,
Como um rio que novo leito rasgasse
Esculpindo as margens, desenhando a foz,
Como um verso que o coração ditasse
Para trazer desassossego à voz,
A guitarra trinou e, no seu canto,
Havia toda a luz que há no meu fado:
Por vezes, as penas do desencanto,
Por vezes, o amor reencontrado;
Cantar é lançar pontes entre braços,
Fazer a guerra aberta à solidão:
Que um fado que se canta é sempre um passo
De um coração p’ra outro coração.
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ROSALINDA, ROSA LINDA
Rosalinda, se tu fores à praia
Se tu fores ver o mar… (Fausto)
Rosalinda é uma rosa linda,
De olhos grandes como o mar.
E o mar é um campo grande, azul,
Com rosas brancas a ondular;
E Rosalinda, uma gaivota a descansar.
Constrói castelos de areia,
Búzios, estrelas-do-mar;
Bonecos que a maré cheia
Vem, um a um, apagar.
Rosalinda é persistente,
Tem paciência de sobra,
No dia a seguir, contente,
Põe de novo mãos à obra:
Um golfinho, uma baleia,
Um barco p’ra navegar,
Mais um boneco de areia,
Que faz caretas ao mar.
Sente as carícias do vento
Olha o voo das andorinhas,
E esboça em cada momento
Um sorriso, que dá alento
Às almas que estão sozinhas.
O sorriso é uma semente,
Uma semente diferente;
Botão de rosa luzente,
Que desabrocha e dá flor.
Não num vaso ou num canteiro,
Não no campo ou num jardim…
Na boca de toda a gente!
Gosta do mar: cheira a vida,
A caranguejo, a luar;
Da subida e da descida
Das ondas, do baloiçar
Dos barcos, ali de fronte;
Da linha do horizonte,
Que divide céu e mar.
Rosalinda é decidida:
Nos labirintos da vida,
Nunca se deixa enredar.
Tem sempre as palavras certas,
E no peito, sempre abertas,
As portas de par em par.
Quando nasceu, Rosalinda
Levou mais tempo a nascer;
E foi esse tempo a mais
Que fez Rosalinda ser
Diferente das demais
Crianças ao seu redor:
Leva mais tempo a aprender.
Mas isso que tem, se tem
Todo o tempo para saber!?
Tanta coisa que Já sabe!
De amor, sabe ela tanto
Como qualquer um de nós.
Talvez até saiba mais!
Num olhar diz coisas tais,
Que nos faz perder a voz;
Tem tanta, tanta alegria
No seu sorriso feliz,
Que sem saber irradia
Uma luz que a todos diz:
(Aos presentes, indiferentes,
Ausentes e outros que tais),
Que embora sendo diferentes
Todos nós somos iguais.
(1.º prémio de poesia no concurso da APPACDM de Setúbal, 2015)
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A FLOR MAIS FORMOSA
Música: Marcha do Marceneiro – Alfredo Marceneiro
Para a Maria, minha neta.
Traz os teus lápis de cera,
Vem desenhar uma pera
Bem gostosa, amarelinha.
Pega nos lápis de novo,
E desenha agora um ovo
E, ao pé do ovo, a galinha.
Traz os teus lápis de cor
E desenha, com amor,
Um coração cor-de-rosa.
Dentro deles, pai e mãe,
Tios avós e tu também,
Tu, que és a flor mais formosa.
Traz agora as aguarelas
Para pintares as mais belas
Roseiras do teu jardim.
Rosas de todas as cores,
Para os teus grandes amores,
E não te esqueças de mim!
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POSTAL LISBOA
Música: Fado Cravo – Alfredo Marceneiro
Gosto de andar p´las vielas:
Vasos de flores nas janelas,
Andorinhas nos beirais…
O Tejo é um risco ao fundo,
Da cor das portas do mundo
Que são teus olhos fatais.
Gosto do som das guitarras,
Gosto de cortar amarras,
Ir aonde me leva o fado.
E na tarde que arrefece,
Da tua voz que enternece,
Quando cantas a meu lado.
Aqui e além um navio.
Gosto da calma do rio,
Sem pressa de ver a foz,
E do modo como me olhas,
Quando o malmequer desfolhas
A tentar saber de nós.
Gosto das ruas estreitinhas,
Dos becos, das escadinhas,
Das varandas enfeitadas,
De sardinhas, pão e vinho,
De lençóis em desalinho,
De fados, de guitarradas.
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DORME EM LENÇÓIS DE TRISTEZA
Música: Fado Primavera – Joaquim Campos
Do castelo olhou Lisboa,
Com o olhar abraçou-a
E disse adeus à cidade.
Dorme em lençóis de tristeza
Bordados à portuguesa,
Com as cores da saudade.
Saudades do casario,
Da luz, dos barcos, do rio,
Das ruas de toda a gente;
Do gato ao sol, à janela,
Do eléctrico da Estrela,
Do rapaz da casa em frente.
Levou o fado consigo:
Seu amante, seu amigo,
Seu amor de toda a hora.
E quando a saudade insiste,
É com o fado que resiste:
Com o fado ri e chora.
Dorme em lençóis de tristeza,
Bordados à portuguesa,
Com as cores da saudade.
Sonha com um novo dia,
Que lhe leve a noite fria
E lhe traga a claridade.