NOTA: Desde a Palavra Comum damos a bem-vinda ao primeiro livro publicado de Luís Mazás López, “Três Tempos“, publicado em Q de Vian Cadernos (A Porta Verde do Sétimo Andar), com desenho, maqueta e execução gráfica do Obradoiro de Nova Galicia Edicións e fotografia e desenho da capa por Xacobe Meléndrez Fassbender.
Agradecemos muito ao seu autor o permitir a reprodução nesta revista de três poemas das diferentes partes do livro, assim como a entrevista que acompanha posteriormente a sua obra.
***
De Abjecção a preto e branco (1995-2001)
Os dias nascem dumas mãos valeiras
e morrem nos olhos verdes de uma fonte antiga
Tal é o desejo que penetra
no eco das solitárias pedras,
no rumor da erva
ao alouminhar o teu corpo despido
Os nossos lábios interpretam a dança perpétua do amor;
assim ficassem para sempre
unidos como a árvore à terra
Mas o final é um tango apaixonado,
e conduz a um sonho frustrado pelo falaz destino,
um sonho que se esvai para nascer além das horas,
além das ruas imaginadas desde uma janela aberta
longe dos quotidianos gestos,
e dos beijos sem paixão
com a irrealidade do áspero tacto da rosa de sangue
Eis a morte que devém a cada passo de baile;
eis uma viagem ardente
que se encena
em todos os jardins imagináveis
ao nascer uma flor entre as rochas da ribeira
Só o rio é o dono do seu destino;
atiremos as nossas lembranças à água dum deus
como um neno deita uma pedra no silêncio dum poço seco
Separemos os nossos corpos
banhemo-nos despidos no lene coração do rio
Unamo-nos à sua música incessante,
à oração dedicada a um deus sem nome,
a uma cova valeira,
a uma rosa imarcescível.
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De O fundo absurdo das paisagens (2002-2007)
O AMOR ESCRITO EM MINÚSCULAS
Pedaços de tempo,
vertigens inomináveis a crescer em harmónico som,
no verso, na palavra trémula
emitida pela voz adolescente do poeta
O amor escrito em minúsculas
é a verdadeira testemunha do mar
a respirar mentes o mundo arde
com palavras incandescentes
e versos escritos na areia branca
Amar criando sem limites
com o som horizontal da guitarra
e os contínuos sinais imóveis
da lâmpada da consciência
Amar no tempo indefinido
e no solitário caminho dos aromas
Cegueira fiel que adivinhas
o sabor salgado da metáfora
Pedaços de versos
nos corpos simétricos dos amantes
a contemplar o fogo-fátuo do futuro
***
De Road Movie (2008-2015)
A TRANSFIGURAÇÃO DO CAMINHANTE
EM SEREIA DO NORDÉS
Acendo o motor silábico do universo do silêncio
Então eu à deriva no mar em tempestade,
começo a declamar versos antigos
de persas e ameríndios
Depois de vários minutos pensando,
rememorando vivências de outrora,
começo a desenhar figuras opacas na erva
O verso começa pelo final dum poemário inédito
que se apresenta como um passo no bordo do abismo,
olhando para o horizonte,
rememorando a música da última sílaba:
preâmbulo do pranto
Persigo a transfiguração do caminhante
em poeta do mar,
em poeta das ruas pintadas
da arte de viver
Histórias derramadas em branco papel,
concebidas para que o auditório fiel
se integre na escritura automática
no prisma antigo, convexo
Locus amoenus transgredido
***
ENTREVISTA
– Palavra Comum: Que é para ti a poesia? Como entendes -e praticas- o processo de criação poética?
– Luís Mazás: Como bem dizia o Ernesto Sampaio: “a literatura exige solidão“. Tomo como referência as suas palavras quanto à poesia. A poesia exige solidão, um mergulhamento no universo próprio; mas, também, nas vivências do poeta com o entorno social.
Em palavras de Antonin Artaud:
O DEVER
Do escritor, do poeta, não é ir-se encerrar
Cobardemente num texto,
um livro, uma revista dos que já
nunca mais sairá, mas pelo contrário
sair fora
aaaaaa para sacudir
aaaaaa para atacar
aaaaaa a consciência pública
aaaaaa se não
aaaaaa para que serve?
E para que nasceu?
Portanto, o poeta, faz um percorrido lento e reflexivo pelos dois mundos: o real e o fictício. Fruto desta investigação linguística nasce a poesia. As circunstâncias vitais do entorno são muito importantes para a oficina poética.
No meu caso pessoal, o mundo laboral, o escasso tempo no que vivemos todos dia a dia tem muito a ver com o meu livro Três Tempos. Um dia um amigo do trabalho comentou-me: Mal ofício escolheste para ser poeta. Sendo certa a sua afirmação a respeito de ser um caixeiro viajante, devo dizer também que a minha profissão proporcionou-me a visão da paisagem da Galiza. Foram nestes vinte anos uns novecentos mil quilómetros pela nossa geografia. Nunca há mal que por bem não venha. No livro há muitas referências, algumas explícitas: Sergude, Pico Sacro, A cova de Eirós, Suevos… e outras implícitas: O Pindo, Laxe, Návia de Suarna, Corcoesto, Fisterra…
– Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre a literatura e outras artes (música, cinema, artes plásticas, etc.)?
– Luís Mazás: Não se pode entender a literatura, a poesia, desligada de todas as artes. A poesia está em comunhão com a música e as artes plásticas ou visuais: pintura, fotografia, cinema, cómic, arquitectura, escultura, …
– Palavra Comum: Quais são os teus referentes -num sentido amplo-?
– Luís Mazás: Os meus referentes são literatos, músicos, pintores, fotógrafos, cineastas.
Se tiver que citar alguns, no eido da literatura: Vicente Huidobro, Fernando Pessoa, Gomes Leal, Leopoldo María Panero, António Maria Lisboa, Antonin Artaud, Mário Cesariny, Dylan Thomas, Bukowski e também o Mário Herrero Valeiro e Jenaro Marinhas del Valle.
Na música: David Bowie, John Coltrane, Tom Waits, José Afonso, Fausto, Jimi Hendrix, Django Reinhardt e também o amigo Miguel Alonso.
Na pintura: Toulouse-Lautrec, Balthus, Xosé Lodeiro, Laxeiro e Picasso.
Na fotografia: Ouka Leele, Walker Evans, Henri Cartier-Bresson, o nosso Ramón Caamaño Bentín e o amigo Xacobe Meléndrez Fassbender.
Cinema: Tarkovski, Akira Kurosawa, David Lynch, Orson Welles, Luis Buñuel, Bigas Luna e Pedro Almodóvar.
– Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação literária hoje -e para a cultura galega, em particular-?
– Luís Mazás: Os caminhos estéticos a percorrer são variados. Todos passamos por várias etapas. Muitos da minha geração bebemos do surrealismo. No meu caso particular, na etapa de estudante de Filologia Hispânica.
Acho que o surrealismo é um postulado estético ainda vigente hoje. Vou citar ao Grupo Surrealista Galego: Xalundes.
– Palavra Comum: Qual é a tua visão sobre a língua galega (e das suas relações com a Galeguia/Lusofonia)?
– Luís Mazás: A literatura galega actual deve ir parelha à literatura portuguesa. Não concebo as duas por separado. Fazemos parte da Lusofonia. É necessário romper os limites que nos imprimem os estados.
A literatura vai por um caminho distinto à política. Isso não quer dizer que o poeta viva isolado da sociedade. Devo voltar a citação de Artaud: o poeta deve sair fora para atacar a consciência pública.
A literatura galega e, em concreto a poesia, deve ir por um caminho livre, sem ataduras às instituições. Eu defino-me em primeira instância como um “amateur”, um poeta de horas roubadas ao sono, de fim de semanas e de férias. Concebo-me como um escritor distante e, em certa maneira, dissidente. Há tempo que tomei a decisão (em parte também obrigado pelas circunstâncias) de ficar apartado do stablishment cultural. Penso realmente que o que valem são as iniciativas individuais das pessoas. Ir à cultura de base.
Actualmente na Galiza há uma nómina bem nutrida de poetas. O poeta, a diferença de há vinte anos, tem umas ferramentas muito úteis para a sua projeção literária. As páginas web e as redes sociais fazem ao poeta livre de ataduras às notas de imprensa, aos prémios literários, revistas literárias, organismos ou entes culturais, que eram os tradicionais há uns quantos anos.
Bem é certo que isso é uma arma de duplo fio, já que há um imenso mar de ofertas culturais na rede e o poeta pode ficar engolido pela maré. Mas isso já faria parte de outro longo e tendido debate.
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