Mais uma vez, agradecemos à poeta portuguesa Alice Macedo Campos que tenha escolhido a Revista Palavra Comum para dar a conhecer estes poemas inéditos da sua autoria.
Obrigad@s por esta alta intensidade na escrita e na vontade de tecer encontros desde a palavra!
*
como gostaria de conhecer essa mulher que escolheu esse objecto raro e de bom gosto, diz o louco, que vive torturado de desejo pelas mulheres de outrora. com o seu olhar vago e assombrado, contempla-nos através do texto e, como não está muito sóbrio, fica-se um instante a cambalear aqui defronte, põe-se a falar do amor, imagine-se, de uma mulher que o terá arruinado por essa extravagância, de uma espécie de carta que recebeu, repleta de palavras incompreensíveis, e de como terá, inacreditável, queimado uma parte do corpo juntamente com a carta, com um fósforo na grelha do fogão. com isto, começa a correr nas suas veias uma raiva profunda, que é capaz de matar. às vezes, um homem tem medo de estar sozinho consigo próprio. consumido por uma ideia fixa, como uma fruta por um verme, o louco, a sua obsessão, estão-nos no cérebro, minando os músculos, comendo-nos a parte do corpo que aquele terá queimado. escreve-se, aliás, este poema onde fica claramente demonstrado o mal do seu espírito. tal é o efeito imediato que provoca que parece que uma luz escura se abate sobre as velas.
*
[alucinação]
diz que tem aranhas a entrarem-lhe no corpo,
desconfia que as palavras são areias movediças,
prefere calar-se, engolir, chama-se upbert mas todos
a tratam por fraulein, ela não gosta, morde os lábios,
pega numa folha de papel amarrotado num lápis velho
e escreve: ganha um bocadinho de amor por mim,
mas ninguém lê. o coração de fraulein upbert
é um vaso de terra perfumada, a noite demora-se
por dentro de uma relativa humidade periférica,
mas a palavra noite descreve o momento glaciar,
oculto, em que a escuridão a trespassa sexualmente.
tem as mãos paradas sobre a bola de papel, abre-a
como um lenço, assoa-se instintivamente, assoa o
nariz às palavras que escreveu, està à espera que
a salvem, pobre ingénua, há areias moventes nos
seus cabelos de água, pequenas cintilações doentes,
coisas visíveis à lupa do homem que lhe passou, por
caridade, entre os seios, a sua língua fria. perguntou
upbert fitando o olhar do desconhecido: vou morrer?
*
ao mesmo tempo que te li, beijei-
te. a pele de um braço arregaçou-
se e deixou exposta em carne viva
uma palavra do teu nome, gravada
hoje no gume cortante do silêncio
*
a cidade está cheia de livros invisíveis,
pessoas inventadas que saem, por vontade
própria, do papel que lhes é atribuído, e vão,
pelo lado da loucura, que é o lado sem sombra,
procurar-se. se a ficção entrar aqui, penso que é
possível, ou outra luz a par da tua, queimar-me-ei?
*
[poema com vista até dezembro]
subirás o meu corpo até ao tecto das águas.
o caminho é doente, terás de escrever a triste
configuração da nostalgia, mastigar uma pedra
inferida pelas brasas, embarcar em névoas cujo
destino envolve o lascivo osso ilíaco de um sonho
*
a noite pensa o corpo,
constrói-o osso a osso e
atira um punhado de terra
sobre o centro grave. pensa
serenamente na loucura, mãos
nocturnas que escrevem nomes
sobre a terra árida, e inventam, da
carne e do silêncio, a mulher pura
*
estão em fuga as minhas mãos, repara:
do que sou, já disseram,
do que não vi, tocaram-lhe,
do que não sei, supõem abertas,
dos teus cabelos, a pontuação fizeram.
é uma dor viver assim com as mãos
à frente do texto por escrever
e suportar a viagem
na eterna página.
*
havia sobre a mesa um pão com três dias
que começou a abrir-se à tua chegada.
era um espectáculo triste o desabrochar
de um pão velho, como se expusesse o
nosso arrependimento. tinhas as mãos
por lavar, nesse dia, quando me tocaste
pela primeira vez. o silêncio pôs-se a rodear-
nos, numa tensão sufocante, enquanto o pão
se esfarelava completamente. esta ferida
aberta entre nós, disseste, e apontaste para
o centro da mesa, no ângulo contrário ao dos
meus beijos. as migalhas do que fomos ali
estavam, com o tempo bem dimensionado
e o inevitável bolor do que se perde. no teu
corpo eu fiz mil viagens, disseste, e puseste
as tuas coisas numa mala, devolveste-me a
chave da porta e saíste sem vestir a camisa.
*
nós lemos os poemas
e matamos um a um os animais
mas quando estamos a sós com o amor
e um homem nos atravessa o sangue
onde ainda éramos virgens,
nenhuma palavra é possível.
*
[passam sobre mim os dias, extenuantes.
o que sei é que existir adquiriu um peso insuportável.
visto-me de manhã, e observo os meus gestos,
como se outra mulher fora de mim, ainda nua e ensonada,
retivesse no seio a vaca da tristeza.
suponho que permanece no quarto, deitada na minha cama,
enquanto finjo, ou procuro a normalidade, até à hora de dormir]
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